As ficções de Vilma Arêas
Ao operar no plano simbólico, com efeito, Vilma Arêas, ensaia uma literatura que está mais próxima das ficções borgeanas.
As ficções de Vilma Arêas
Por
O escritor argentino Jorge Luís Borges tem como uma de suas obras mais célebres o livro Ficções. Não é exagero afirmar que os textos que compões aquela obra ajudaram a criar no imaginário coletivo dos leitores um Borges ideal, mais próximo de uma ficção experimental e, de certa maneira, do autor que se sentia mais à vontade como leitor do que como escritor. Coincidência ou não, a escritora Vilma Arêas também compôs suas ficções, reunidas no volume Vento Sul, publicado no final de 2011 pela Companhia das Letras. A seleta, conforme se lê nos Dados Internacionais de Catalogação na Publicação, pertence ao gênero conto – mais precisamente, Contos Brasileiros. Ocorre que, de alguma forma, a autora não parece conformada com a classificação, e daí as ficções no alto da capa do livro dão conta de um universo mais genérico, das ficções, proporcionando, talvez, uma proximidade com uma literatura que não tem vínculo com o real ou simplesmente configurando um outro ponto de referência para o leitor desses textos.
Em Vento Sul, com efeito, não há outra unidade possível nos textos que não seja a da presença da ficção como pedra de toque da literatura de Vilma Arêas. Ainda que nos dois primeiros textos “Thereza” e “República Velha”, a autora cite nominalmente o “vento sul” como sinal de que mudanças extraordinárias estavam previstas na jornada das personagens, o leitor aprende que essa relação entre título e obra é por demais reducionista para dar conta do que existe nos textos seja do ponto de vista formal, seja numa análise mais hermenêutica dos contos da autora. Nesse sentido, cumpre observar a proposta de forma mais detalhada, uma vez que Arêas divide o livro em quatro partes, a saber: “Matrizes”, “Contracantos”, “Planos Paralelos” e “Garoa, sai dos meus olhos”. A hipótese aqui é: talvez mais do que incomodada com a catalogação dos textos do ponto de vista dos gêneros, a autora estabeleceu em seus textos uma ordem que pode servir para a identificação e entendimento das narrativas.
Assim, se nos textos de “Thereza” e “República Velha” compreendemos um cenário e um contexto distantes do nosso espaço-tempo (histórias de um Brasil arcaico em seus usos e costumes), em “O Rio” existe uma preocupação com um ambiente mais contemporâneo e, se o texto fosse mais objetivo, talvez fosse possível afirmar que não se tratava de um conto, mas sim de uma carta de despedida ou homenagem. Da mesma forma, em “O Encontro” , lemos uma narradora atenta em não deixar escapar os detalhes ao mesmo tempo em que não dá espaço para a reprodução dos diálogos – e em dado momento, há uma menção a isso de forma enviesada: “os dois faziam um grande esforço para se tocar, estendendo as mãos, lutando em silêncio, como acontece nas comédias do cinema mudo”. Num conto sem diálogos, a alusão ao cinema mudo é singular para sugerir o estilo do texto.
Na sequência de contos seguinte, “Contracanto”, o texto mais impactante, sem dúvida, é “Caçadores”, que facilmente pode ser tomado como bandeira pelos defensores de uma existência mais responsável na convivência com os animais. O narrador do texto apresenta o universo, a um só tempo, insensível e cruel dos caçadores e dos apreciadores da lagosta, iguaria dos sofisticados, como sugere o conto. Na literatura contemporânea, ao menos dois autores já dedicaram obras ao tema. J.M. Coetzee em “A vida dos animais” e Jonathan Safran Foer em “Comer Animais” escreveram textos que, em alguma medida, podem ser confundidos com panfletos ideológicos. No caso de Vilma Arêas, o conto em questão poderia ser facilmente incluído como texto-chave de uma ONG que cuida dos direitos dos animais, a não ser pelo fato de a obra estar sob a chancela da “ficção”.
Continue a leitura com um teste grátis de 7 dias
Assine Livraria Trabalhar Cansa para continuar lendo esta publicação e obtenha 7 dias de acesso gratuito aos arquivos completos de publicações.