K-Punk at large, pt.01
Simon Hammond, neste texto, traça um amplo panorama da obra do filósofo e crítico cultural inglês Mark Fisher.
K-Punk at large, pt.01
Por Simmon Hammond
“K-Punk at large” foi publicado originalmente na New Left Review de julho-agosto de 2019. Simon Hammond, neste texto, traça um amplo panorama da obra do filósofo e crítico cultural inglês Mark Fisher (1968-2017), centrando-se na coletânea K-Punk, lançada em 2018. Examina o trabalho de Fisher num arco de maturação que vai de Realismo Capitalista (2009), seu primeiro livro, a Comunismo Ácido, o livro que deixou apenas esboçado.
1 - Introdução
É possível que Mark Fisher, o escritor e crítico cultural inglês, seja conhecido principalmente por seu incisivo primeiro livro, Realismo Capitalista (2009). Título inaugural de uma editora insurgente, o livro teve um sucesso inesperado e instantâneo e foi traduzido para vários idiomas. Sua crítica abrasiva aos minguantes horizontes imaginativos do neoliberalismo foi formulada durante o triunfo do livre mercado, em seus anos de expansão econômica, e desenvolvida por Fisher em seu blog de culto, K-Punk; o livro, porém, foi publicado num contexto radicalmente diferente, quando o mundo estava se recuperando da crise financeira. Era a hora certa. Como diagnosticou Fisher, o efeito da crise foi ambíguo, apelando, por um lado, a um questionamento do sistema e, no entanto, por meio da resposta governamental, aparentemente confirmando-o como a única alternativa possível. A evolução da situação britânica misturou ambos (os efeitos): no ano seguinte, os conservadores recuperaram o poder e as medidas de austeridade logo provocaram uma nova onda de protestos. Embora fosse um teórico da cultura, Fisher participou do ambiente galvanizado por essa nova situação, emergindo nesse clima ainda mais turbulento como uma presença atípica, porém influente, da esquerda britânica.
Mas após o ressurgimento subsequente da esquerda no parlamento, Fisher permaneceu calado e desapareceu imediatamente, mantendo-se em silêncio. Um segundo livro, Ghosts of My Life (2014), foi publicado depois de Realismo Capitalista; um terceiro, The Weird and the Eerie (2016), apareceu pouco antes de Fisher tirar a própria vida em janeiro de 2017, aos 48 anos. Talvez sua morte pareça ainda mais trágica devido ao momento em que ocorreu: em nível pessoal, porque finalmente ele havia conseguido adquirir uma posição acadêmica relativamente estável, após uma carreira docente precária e pouco sistemática, o que lhe permitiria, junto com sua companheira, criar seu filho em segurança; politicamente, porque sua enfermidade mental havia não apenas inibido seu envolvimento na mudança radical que ele estava esperando, mas o impediu de testemunhar o surgimento de Jeremy Corbyn3 nas primeiras eleições daquele verão. Após sua morte, seus amigos e colegas fizeram uma série de relatos emocionantes, muitas vezes esclarecedores, a respeito de Fisher enquanto pessoa e escritor. Até o momento, porém, não parece que tenhamos situado seu trabalho dentro do contexto mais amplo da crítica cultural. A publicação de K- Punk: the collected and unpublished writings of Mark Fisher (2004-2016), uma coletânea póstuma e extensa de seus escritos curtos – posts, artigos, ensaios e outros materiais – oferece uma oportunidade para examinarmos suas realizações.
Como ponto de partida, pode ser útil comparar o pensamento de Fisher com o de Stuart Hall, um dos mais importantes teóricos culturais da geração anterior. Escritores com talento e orientação de esquerda examinaram de maneira profunda a cultura britânica em seu sentido mais amplo, bem como suas condições de possibilidade: Hall analisou a base da hegemonia thatcherista como uma “solução” para o mal-estar do capitalismo britânico; Fisher mapeou a paisagem que emergiu após a consolidação do thatcherismo através do Novo Trabalhismo. Ambos liam a cultura popular – “as artes populares”, como Hall as definia – para procurar o que Fisher chamava de “traços de outras possibilidades”, de outros mundos. Hall falava em aplicar os procedimentos da crítica cultural às obras populares para distinguir aquelas que tinham uma qualidade real daquelas que eram meramente ostensivas ou dissimuladas. Buscar essa diferença de valor é crucial nos escritos de Fisher sobre a música contemporânea. Ambos, de maneiras diferentes, eram estrangeiros. Hall, nascido na Jamaica, procedia de uma família refinada de classe média, que contava com serviço doméstico; ele desembarcou com uma bolsa Rhodes na Grã-Bretanha da década de 1950, onde havia cartazes nas janelas das pensões que diziam “negros não”. As origens de Fisher junto à classe trabalhadora em East Midlands também lhe proporcionaram a visão privilegiada de um forasteiro; mas, embora geograficamente estivesse mais perto da metrópole, sua origem lhe dava uma sensação muito mais visceral e permanente de estranhamento e marginalidade. Ambos combinavam ensino com intervenções no ambiente cultural da esquerda: no caso de Hall, nas revistas Universities e Left Review, NLR, Marxism Today e Soundings; no caso de Fisher, na blogosfera e na editora Zero Books, seguido de seu avatar, Repeater, nas editoras independentes que fundou com Tariq Goddard e outros amigos e, mais tangencialmente, nas revistas Mute e Wired e na think tank Compass.
As profundas diferenças entre eles são reveladoras da trajetória daquela cultura que era seu tema comum. Hall, nascido em 1932, atingiu a idade adulta num período de otimismo e maiores possibilidades para a esquerda. A economia britânica estava à beira de seu crescimento no pós-guerra, o estado de bem-estar era ainda novo e radiante, os sindicatos estavam no topo de seu poder. O enorme sucesso internacional da música pop britânica de origem trabalhadora – Beatles, Stones, The Who – cimentava a solidez cultural do período, enquanto proliferava uma cultura jovem florescente e, no teatro, na televisão e no cinema, apostava-se em trabalhos experimentais. Universidades, institutos politécnicos e escolas de arte proliferavam. No final da década de 1950, Hall havia deixado sua tese sobre Henry James, em Oxford, para trabalhar para as revistas de esquerda, para ensinar idiomas numa escola secundária masculina de Londres, situada no escalão mais baixo de um sistema definido pela classe social e depois para ensinar cinema na Chelsea Technical College. Em 1964, convencido por The Popular Arts – uma tentativa, em coautoria com Paddy Whannel, de integrar cinema e jazz no currículo escolar –, Richard Hoggart contratou Hall como pesquisador no recém-inaugurado Centro de Estudos Culturais Contemporâneos de Birmingham (CCCS), pagando-lhe o salário de seu próprio bolso. Quando Hoggart deixou o centro para trabalhar junto à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Hall se tornou diretor até 1979, ano em que assumiu a cadeira de sociologia na Open University. Ele sempre se beneficiou de constante apoio institucional e, como intelectual público na era da televisão, participava regularmente dos debates nacionais.
Fisher, nascido em 1968, cresceu em um período que ele caracterizaria de forma convincente como uma era de desintegração. O determinante crucial de sua formação foi uma adolescência que se desenrolou entre o ponto alto e o subsequente outono de uma era, pois a economia mundial passou de um longo período de expansão para um longo período de declínio, o que causou a crise do pacto do pós-guerra. Os parâmetros exatos dessa periodização estavam sujeitos a alterações, mas o arco costumava ser claramente demarcado: “1979-1980”, ele escreveu num ensaio sobre os sons depressivos da banda pós- punk Joy Division, foi “um limiar, o momento em que todo um mundo (social-democrata, fordista, industrial) se tornou obsoleto e começou-se a vislumbrar os contornos de um novo mundo (neoliberal, consumista, informatizado)”. A economia havia passado pelo liquidificador de Thatcher com o resultado conseguinte de altos níveis de desemprego e crescente insegurança; os sindicatos haviam sido destruídos, a austeridade e a mercantilização tornaram-se condições permanentes e as universidades foram impiedosamente pressionadas. O cenário da cultura de massas era cada vez mais monopolizado e comercializado, dominando uma cena subcultural fragmentada na qual classe e cultura haviam, em grande parte, se desarticulado. Em contraste com Hall, o próprio Fisher, no que diz respeito ao relacionamento que mantinha com as instituições, com o público e com as formas culturais que escolhia, e em relação a muitos dos fenômenos culturais que examinou, era uma figura subcultural. Relegado a um trabalho precário, seus escritos foram possibilitados posteriormente pela Internet e a reputação que obteve tinha vigência nas margens da academia e longe do alcance do radar do jornalismo hegemônico. Seu trabalho também era tipicamente subcultural em razão do investimento emocional que gerava, produzindo um tipo de adesão mais afim à música pós-punk e à música eletrônica que compunham o território próprio de sua crítica.
No caso de ambas as figuras, que operavam em diferentes pontos da restauração neoliberal, essa era a realidade política que consumia suas energias. Em suas nítidas reflexões sobre o surgimento, as modalidades, os efeitos e a resistência do neoliberalismo, ambos concordaram com o primado da cultura como ferramenta analítica e como substância de suas conjecturas. De maneira mais destacada, a oposição que ambos organizaram pode ser caracterizada como explicitamente modernizadora: sua atenção se concentrou na necessidade de se adaptar aos tempos, enquanto suas críticas se dirigiam ao que identificavam como sendo o fracasso da esquerda na hora da capturar o caráter da época e dar-lhe uma resposta mais apropriada. Críticos do Partido Trabalhista, a partir de seu flanco esquerdo, tentaram influenciar na sua direção durante os períodos em que este não governava: Hall durante o governo conservador da década de 1980 e início da década de 1990; Fisher durante o período subsequente, que começou em 2010 e continua no momento em que escrevo este artigo. Foi, de fato, durante esse compromisso paralelo com a política parlamentar e com os aspectos práticos da mudança política que Fisher interatuou mais claramente com o trabalho de Hall, não apenas prestando-lhe homenagem, mas também elogiando a relevância duradoura de seus diagnósticos e prescrições. Tendo iniciado sua vida intelectual como antagonista dos Estudos Culturais e depois seguindo uma trajetória distanciada de Hall, Fisher encontrou, nos últimos anos de sua vida, uma causa comum com seu antecessor.
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