K-punk at large, pt.04
K-punk at large, pt.04
Por Simon Hammond
9 Acossado
Quando Ghosts of My Life ainda estava no prelo, o envolvimento de Fisher com a política digital atingiu um ponto de inflexão doloroso. Na medida em que os movimentos estudantis e contra as políticas de austeridade perdiam força, alguns setores do ativismo voltaram suas energias contra si mesmos. “Neste verão, considerei seriamente a possibilidade de me retirar de qualquer envolvimento com política”, começa a crítica de Fisher à cultura de denúncias on-line em “Sair do Castelo do Vampiro”. “Exausto devido ao excesso de trabalho, incapaz de qualquer atividade produtiva, me encontrei vagabundeando pelas redes sociais, sentindo como meu cansaço e minha depressão aumentavam”. Um pouco antes, nesse mesmo ano, ele havia se retirado das tempestades de esquerda no Twitter, nas quais personagens concretos eram “expostos” e condenados; o que diziam, às vezes, poderia ser censurável, mas, no entanto, “a maneira pela qual foram pessoalmente difamados e perseguidos deixou uma sensação residual horrível”. “A razão pela qual não me manifestei sobre nenhum desses incidentes, tenho vergonha de dizer, foi o medo que tive. Os valentões estavam na outra parte do playground. Eu não queria atrair a atenção deles para mim”. Os violentos ataques por parte das redes sociais de esquerda contra Russell Brand, o cômico inglês que desafiou o apresentador do Newsnight, Jeremy Paxman, fizeram- no mudar de ideia. A resposta exasperada de Fisher analisava as “formações libidinais- discursivas” que haviam conduzido a essa “circunstância desmoralizante”: “Dizem-se de esquerda, mas, como o episódio de Brand deixou claro, são, sob muitos aspectos, sinais de que a esquerda, definida como um agente da luta de classes, praticamente desapareceu”. A nova cultura de denúncias estava sustentada por uma manifestação perniciosa da política identitária, na qual a mera menção à classe social era tratada agora como se implicasse minimizar a importância de raça e gênero. Contra o “identitarianismo”, Fisher invocava a tradição dos Estudos Culturais de Hall, citando a obra de John Akomfrah. Parte daimportância dessa tradição era ter resistido ao “essencialismo identitário” – “reconhecer que não há identidades, apenas desejos, interesses e identificações. [...] a questão era tratar qualquer articulação como provisória e dotada de plasticidade”.
Comumente caricaturizado ou mal-interpretado, o ensaio recebeu uma resposta on- line violenta, provocando – numa ironia – o mesmo tipo de comportamento que procurava analisar. Muito além de quaisquer limitações em seu argumento – afinal, foi escrito durante um período de depressão –, a postura assumida contra as crueldades dessa cultura era, de uma só vez, valente e clarividente. O mundo virtual, que havia sido fonte de excitação desde os dias do CCRU, havia proporcionado a Fisher, desde muito tempo, um refúgio e uma arena para seu talento. Contemplar como se convertia numa patologia, e depois sentir-se obrigado a exilar-se dele – a partir de então retirou-se das redes sociais, seus posts no blog se tornaram infrequentes e, logo depois, minguantes – deve ter sido algo muito difícil.
10 Escritos coligidos
Os temas e as preocupações dos livros de Fisher aparecem como leitmotivs desta nova coleção. Com cerca de 800 páginas, reúne a maior parte dos escritos que Fisher produziu durante o período, mapeando o território desde o início de K-Punk até seus últimos trabalhos, do final de 2016; está prometido um volume independente, com textos anteriores a 2004. Dos seus 140 itens, mais da metade são procedentes do próprio K-Punk e o restante são contribuições para diversos tipos de publicações (jornais on-line e off-line, revistas de arte, música e política), entrevistas dadas ao longo do período, e alguns poucos itens singulares, incluindo um esboço do que seria a introdução a Comunismo Ácido, um trabalho que permaneceu inconcluso em razão de sua morte. É uma seleção extensa, embora não exaustiva. Estão ausentes uma série de peças de interesse filosófico e político, incluindo sua resenha de Valences of the Dialectic (2009), de Jameson, publicada em Mute, em 2010, bem como algumas peças mais extensas de jornalismo musical. Essas omissões são o lamentável resultado de preferências editoriais tácitas, muito embora se deva notar que a obra de Fisher representa um desafio para qualquer organização, com muitas de suas ideias e seus melhores insights espalhados por reflexões transitórias. Inexplicavelmente sem um índice, a coleção é ordenada por temas para ajudar na navegação, mas isso tem suas desvantagens: não acompanha a propensão de Fisher de tratar filmes, música, autobiografia, teoria, política e sociedade em conjunto, enquanto que a ruptura da cronologia impede o exercício de rastrear o movimento de seu pensamento.
Uma coletânea assim desafia qualquer resumo. Contém apreciação e crítica cultural, reflexões sobre ideologia e estratégia política, exame minucioso da paisagem midiática e evisceração da política governamental, bem como meditações sobre as texturas da experiência contemporânea. A coleção, da mesma maneira, abriga uma variedade de formatos. Os escritos procedentes do blog são os mais informais, dado que são respostas a fatos efêmeros, àquilo que Fisher vinha assistindo, lendo ou ouvindo, discussões dentro do ambiente on-line em que ele se movimentava. Ler suas reflexões heterogêneas é observar suas ideias em processo de formação, seguir as peregrinações de uma inteligência única e generosa. O tom dominante é plangente, mas há também flashes de euforia. Um emocionante cronista dos tristes tropiques da Grã-Bretanha neoliberal, Fisher também se dedicou a procurar brechas de possibilidades (ou possibilidades através de certas brechas) e sonhar durante uma seca de pensamentos novos. Fervoroso em suas convicções culturais, ele também conservava uma abertura para encontrar alguma coisa valiosa em lugares inesperados, com textos que registram frequentemente essa emoção da descoberta. Sua escritura, que, em sua decodificação do contemporâneo pode alcançar uma qualidade quase numinosa, dotando os destroços da vida cotidiana de significado e importância, estimula uma emoção familiar.
Cumulativamente, a seleção marca os altos e baixos, tanto intelectuais e políticos quanto emocionais e financeiros, de uma vida de escritor. A progressão da carreira de Fisher após Realismo Capitalista levou a um número crescente de encargos. O novo clima era um pouco mais receptivo à sua escritura; ainda que Fisher continuasse sendo uma figura marginal, ele começou a contribuir para uma série de publicações culturais e de tendências de esquerda, incluindo um renovado The New Statement. Não que a vida como escritor freelancer fosse menos precária: numa entrevista, descreve como teve que “continuar trabalhando a um ritmo infernal para manter a cabeça fora d’água”, enquanto que, numa nota de um minucioso artigo sobre elitismo e populismo, lamentava que “o tempo fragmentado e dividido da precariedade” o impedisse de trabalhar em “projetos mais longos”. Boa parte do que Fisher produziu em formatos curtos era crítica cultural. Uma ampla gama do que se apresenta aqui mostra uma afeição particular por formatos e gêneros populares e pulp. Ballard, Lovecraft, Lynch e Cronenberg eram suas pedras de toque. O realismo, em qualquer meio, estimulou, de fato, pouco interesse. Com exceção do cinema, ocupou-se amplamente com a cultura britânica. Implacável em relação a boa parte da televisão e da música pop atuais – em críticas de uma cultura contemporânea degradada que poderiam estar atreladas à tradição da Kulturkritik –, se opõe ao gosto cultural elevado, à“condescendência cognitiva dos instruídos do centro de Londres”, a respeito dos quais se lamenta num texto publicado por ocasião da morte de Ballard, em 2009. Desdenhando o empirismo nativo, com sua aversão às ideias, também promoveu seu próprio cânone teórico, procedente, em grande medida, das fileiras da filosofia continental.
O pós-punk emerge como uma de suas lealdades culturais mais importantes. Embora celebrasse a cultura do consenso do pós-guerra, Fisher se sentia visceralmente atraído por obras forjadas no tumulto de sua desintegração. Jovem demais para ter vivido a primeira fase do movimento punk, ele havia atingido a maioridade escutando uma trilha sonora de desvios, de rupturas em relação às formas anteriores, que instilaram nele a crença de que o pop é algo mais do que um “prazer agradável”. Um post do blog insiste que “mais ou menos tudo o que escrevi ou participei foi, em certo sentido, uma tentativa de manter minha fidelidade com o ‘evento pós-punk’”. Três artigos sobre a lendária banda pós-punk The Fall, escritos entre 2005 e 2006, indicam dois sentidos dessa afirmação. Ao elogiar sua refutação de que qualquer noção de experimentalismo e sofisticação não fossem próprios da classe trabalhadora, Fisher também prestou homenagem ao impressionante efeito brechtiano que o trabalho da banda teve sobre ele próprio. Isso era, afinal de contas, o que o próprio Fisher representava – ele estava mais próximo, em alguns aspectos, dos artistas que admirava do que dos colegas escritores de esquerda –, bem como aquilo que sua obra, em grande medida, procurava conjurar. Como declarou em Realismo Capitalista, “a política emancipatória deve sempre destruir a aparência de uma ‘ordem natural’, deve revelar que oque é apresentado como necessário e inevitável é uma simples contingência, assim como deve fazer que aquilo que era previamente considerado impossível possa parecer alcançavel”.
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