O jeito é voar (A história do senhor Sommer, de Patrick Süskind)
Na vertical ou na horizontal, mas sempre além.
O jeito é voar (A história do senhor Sommer, de Patrick Süskind)
Alexandre Sartório
A história do senhor Sommer (1991) (ed. 34, 2021)
Patrick Süskind, ilustrações de Sempé
trad. Samuel Titan Jr.
Em “A inteligência e o cadafalso”, seu ensaio clássico sobre A Princesa de Clèves, romance de Madame de La Fayette, Camus diz que para os grandes romancistas franceses “não interessava a forma pela forma, mas somente a relação precisa que eles queriam introduzir entre seu tom e seu pensamento. A meio caminho entre monotonia e a loquacidade, eles tinham que encontrar uma linguagem para sua obstinação”; para eles o fundamental era fazer o leitor sentir sua obstinação; eles só queriam cumprir sua missão: levar o condenado ao cadafalso.
Pois bem. O narrador da novela juvenil A história do senhor Sommer (1991), de Patrick Süskind, autor do romance O perfume, que fez um sucesso enorme quando lançado, em 1985, parece seguir uma direção absolutamente diferente; parece querer ser um narrador antifrancês. Ironicamente, Süskind conta com a ajuda do mais francês dos ilustradores, Sempé – que aliás, é perfeito ao dar forma ao senhor Sommer e ao narrador, que conta como foi sua infância na Alemanha do pós-guerra.
A novela tem aquela estranheza encantadora dos clássicos para os pequenos, como Alice, como os contos de fadas contados pelos Grimm, pelos Andersen, como as histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Antes de tudo, porque traz no título o nome do senhor Sommer, um personagem que passa sempre correndo pelo olhar do narrador, que cruza com ele em momentos decisivos, mas que mal fala, pouco faz além de andar apressado; e a história se concentra na formação do narrador, que nem nomeado é. Ele cresceu na Alemanha do pós-guerra, na Vila de baixo, para onde ia depois da aula, na contramão de seus colegas, que voltam para suas casas na Vila de cima: o menino passou pela privação advinda da guerra, pelas diferenças de classe, pela brutalidade de uma professora de piano em classe, pelos angústias do primeiro amor, pela incompreensão dos outros, pelos desentendimentos com a família. Diante de tudo isso, ele precisava de paz. E ele a encontrava no alto. Literalmente: subindo em árvores.
Era muito tranquilo lá em cima, onde todos me deixavam em paz. Nenhum chamado incômodo de mãe, nenhuma ordem imperativa de irmão mais velho chegava até lá, só o vento e o murmúrio das folhas e o suave ranger dos galhos... e a vista, a vista maravilhosamente ampla: podia enxergar não só além da nossa casa e do jardim, mas além das outras casas e dos outros jardins, para lá do lago e da região atrás do lago e até as montanhas, e quanto, à tarde, o sol se punha, eu podia vê-lo do topo da minha árvore ainda por detrás das montanhas, quando fazia tempo que ele já se fora para as outras pessoas lá no chão. Aquilo era quase como voar. (p. 11)
O texto deambula, chega a ganhar os ares, como se o menino voltasse a voar ao narrar essa aventura tão íntima da infância. No alto ele quase voava e lia. Familiarizava-se com os livros, com as teorias científicas. E nada parecia explicar o comportamento do senhor Sommer, que todos viam passar de um lado para outro da cidade, sempre apressado, inquieto. Os pais tentaram explicá-lo com uma palavra: “claustrofobia”. Mas o menino sabia que uma palavra só era explicação simples demais. Só sabia, pois foi das poucas coisas que ouvira da boca do curioso tipo, que ele “queria paz”. O destino do senhor Sommer – que não entregarei neste texto – é enevoado, misterioso, é de um estranhamento clássico, que talvez remeta ao destino de Édipo, ao pai de “A terceira margem do rio”. De qualquer forma, o destino do senhor Sommer é uma lição fundamental para o narrador quando menino, é graças a ele que ele segue em frente. Ou para o alto. Mas sempre em busca da paz, da harmonia do espírito.
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