O obscurecimento da inteligência
Um capítulo exclusivo do livro O que restou da política, de Diogo Chiuso
A editora Noétika é um projeto editoral que nasceu da parceria entre o
e o , que juntos perceberam as limitações de um mercado editorial cada vez mais avesso ao verdadeiro debate de ideias. Mas tais limitações também mostram que existem oportunidades: de se criar um novo público, de ousar publicar livros que remem contra a corrente, de ocupar espaços abandonados ou em ruínas. Práticas e valores que casam plenamente com os ideais da [trabalhar cansa], e por isso hoje celebramos essa parceria entre a Noétika e a [tc], que se inicia com a venda dos dois primeiros títulos da editora:O que restou da política e Minha contribuição para tornar o mundo um lugar ainda pior - livros que vocês podem pedir pela nossa loja online ou pelo WhatsApp (11) 97860-6565
Para atiçar a curiosidade de vocês, segue abaixo um capítulo do livro O que restou da política, do Diogo Chiuso.
Boa leitura!
Obscurecimento da inteligência
Por
O filósofo Theodor Adorno não gostava de assobios. Mais especificamente de jovens no metrô assobiando o final da 1a Sinfonia de Brahms. A ele, nada era mais ultrajante do que a vulgarização da música, isolando partes da estrutura musical para profaná-la com assobios na fila da espera do trem. Adorno odiava essa tendência do romantismo burguês de amputar uma peça da arte musical para transformá-la num mero fetiche nos lábios contraídos das ralés das estações.65 Tudo isso, de acordo com ele, revelava o “império milenar de um sistema de casta industrial governado por um fluxo de intermináveis dinastias”.66 A coisa, assim exposta, parece séria demais para se fazer piadas, mas creio firmemente que o compositor polonês Krzysztof Penderecki encontrou uma solução ideal para as aflições metroviárias de Adorno: transformar a música tecnicamente em algo “inassobiável”.
De qualquer modo, desde o fim da 2a Guerra Mundial, o estudo dos meios de comunicação de massa e a sua influência na condução da política tornou-se um clichê entre os pesquisa- dores. Adorno acreditava que a indústria cultural havia substi- tuído a falsa consciência promovida pela ideologia. A partir de então, tudo tornou-se mera propaganda. Surge o entreteni- mento como fuga da realidade, como alienação. O conteúdo é padronizado e visa apenas o lucro e a audiência: é o mundo dos hits e dos bestsellers onde tudo se repete num ciclo de reapro- veitamento, e o mesmo produto é vendido em diversas versões. A sua preocupação, portanto, é um pouco maior do que a vulgaridade dos bens culturais exposta pelo escritor Aldous Huxley no livro Admirável mundo novo, que se passa numa sociedade apática de pessoas programadas em laboratório para cumprir os papéis definidos a priori pelo planejamento estatal. Para Adorno, a sociedade tecnológica é o estágio final da desumanização do homem, e, junto com Max Horkheimer, conclui que “a fusão da cultura com o entretenimento não se realiza apenas como depravação da cultura, mas também como espiritualização forçada da diversão”. Portanto, a tentativa do homem de usar a razão para dominar a natureza terminou por transformar o próprio homem em objeto de domi- nação, ou seja, a promessa iluminista de progresso e liberdade conduziu-nos a uma nova forma de tirania: o consumismo.
Assim, já temos o ambiente ideal para o advento do homem- massa de Ortega y Gasset. O señorito satisfeito que acredita ser portador de todos os direitos que sua vontade pode conceber; que acredita ter a vocação de opinar sobre tudo, porém, perdeu a audição: não ouve, não permite que outros tenham opiniões diferentes. É o novo homem, banal o bastante para não querer dar razão e nem querer ter uma própria.
O señorito satisfeito é também um deslumbrado. Ele acredita que pode dominar o mundo com estatísticas e um sistema de gestão online. Seu objetivo de vida é transformar as relações humanas num algoritmo, é encontrar um meio de resolver os problemas da vida humana como se resolve um problema de programação linear; ele acredita ser possível separar o sujeito humano do sujeito técnico quando exige que um funcionário não traga para a empresa um problema pessoal. No fundo é um positivista: crê piamente na salvação pela técnica, na mística dos números e na doutrina do Power Point e das planilhas Excell. Sua fé e sua esperança estão depositadas nas normas de certificação de qualidade, até porque ele acredita que a felicidade é nada mais do que um sistema de gestão com relatórios burocráticos duas vezes por semana, aos quais, naturalmente, a realidade deve se ajustar.
Não é à toa que a vida privada fora abolida. Atualmente a vida pública conta mais do que um curriculum vitae recheado de habilidades profissionais e cursos multidisciplinares que consumiram infinitas horas-aulas: as pessoas são aquilatadas não mais pelo que são ou pelo que sabem fazer, mas pelas respostas que um sistema de gestão espera dela – e para o qual devem ser treinadas. A curva de vendas e de produtividade foi substituída por atitudes pré-determinadas, e a participação nos lucros por uma plaquinha de funcionário do mês.
Estse ambiente foi preparado no século XX, quando trans- formaram o homem numa peça de uma engrenagem, tal como os personagens de Charles Chaplin em Tempos Modernos. Era preciso um treinamento que capacitasse o homem para responder mecanicamente a situações previsíveis dentro de um processo mecanicista. Aperfeiçoar o homem é tão somente exigir que ele siga protocolos, preencha formulário e realize o check list tão logo termine as suas tarefas. A razão, incre- mentada pela técnica, permitiu que o homem se tornasse irrele- vante dentro de um ambiente totalmente controlado. Assim, criou-se a ideia de ser possível – e fundamental – eliminar as incertezas e inconstâncias da vontade humana, e a sociedade passou a ser vista com uma obra de engenharia. Não se trata “do que o seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer pelo seu país”. Nesse tecnicismo político, os idólatras da eficiência procuram sempre um método, um plano quinquenal que sacrifique o homem apenas para se alcançar uma visão de mundo. A sociedade, com todas as suas contradições e injus- tiças, deve ser manipulada para atingir objetivos planejados com técnicas, fórmulas e cálculos mais ou menos complexos.
Talvez seja necessário um parêntesis para esclarecer que não estou encampando uma luta quixotesca contra a técnica nem insinuando uma nova distopia em que a máquina escraviza a humanidade. Tento apenas expor a ilusão da burocracia da técnica que insiste em proclamar o progresso tecnológico como civilizador e aperfeiçoador do homem. É certo que existem pessoas que têm medo da tecnologia e da bomba atômica; eu temo apenas os relatórios, os cronogramas e os planejamentos quinquenais. Porque, como dizia Gustavo Corção, a bomba atômica, nas suas mais perigosas realizações, com todo o seu portentoso acúmulo de energias, obedece a três ou quatro palavras escritas numa ordem de serviço. É um Leviatã dócil. Quem nem sempre é dócil é o homem que assina a ordem de serviço. Portanto, não é prudente deixarmo-nos seduzir pela ideia genial de um método infalível que exige a suspensão temporária – quem sabe definitiva? – da humanidade.
O problema é sempre tentar reduzir a métodos práticos tudo o que se passa no mundo, com a presunção de ser possível conhecer e manipular todas as coisas. Isto não leva apenas a uma má compreensão ou a uma compreensão errada porque significa, de fato, apenas ignorar o que ainda é desconhecido, fingindo não existir a imponderabilidade da liberdade humana.
A inteligência pressupõe limite, pois não é possível conhecer e prever tudo. Ignorando isso, a conclusão não é apenas negar a realidade, mas tudo aquilo que não se percebe e que não se vê, afirmando preconceitos e crenças que não se justificam racio- nalmente. É o obscurecimento da inteligência de que trata o filósofo italiano Michele Federico Sciacca. Porque o homem pode cair a um nível puramente animal-racional, que é a forma mais completa e contraditória de irracionalidade. O animal está privado de inteligência, mas não do cálculo exato e infalível segundo o mecanicismo de seus instintos. Já o homem, não perde a razão, mas a luz que a ilumina. Assim, com sua inteligência obscurecida, ele passa a utilizar seus cálculos exatos e infalíveis apenas para justificar suas vontades e interesses banais.
A partir de então tudo passa a ser medido conforme a sua utilidade mais imediata. O resultado é tornar o homem incapaz de estabelecer juízos de valor e, por isso, acaba-se aceitando tudo impassivelmente, sem nenhum questionamento. Em suma, é a banalidade do mal que Hannah Arendt viu no Holocausto, quando homens normais passaram a cumprir ordens psico- patas, e que Zigmunt Bauman retomou para estabelecer o ápice da insensatez da modernidade líquida. O ceticismo radical pós-moderno cria um ambiente não apenas de desconfiança mútua, mas de banalização e relativização dos valores morais e das relações pessoais. Num mundo em que os valores mudam constantemente, nada parece ter sentido, nada é sólido porque tudo flui de forma líquida, para usar a terminologia de Bauman. As distinções se dissolvem no tempo e tudo pode ser reinterpretado à luz de um novo valor a ser perseguido em função de algum interesse obscuro. Como nada mais tem sentido, resta-nos buscar alguma satisfação pessoal para aplacar o fardo da existência pesando sobre as pernas. Restou-nos apenas a felicidade utilitária burguesa.
Assim, de um materialismo radical, passamos a um indivi- dualismo mimado até chegarmos no símbolo absoluto da pós-modernidade: o irracionalismo ideológico e extremista. É preciso sempre uma atitude radical para ser reconhecido num mundo em constante mudança, mas esse radicalismo deve ser seguro o bastante para que ninguém corra riscos. Em busca de segurança, a sociedade burguesa sempre enterra seus talentos. Nesse mundo artificial e de aparências, é preciso ser alguém com consciência social, preocupado com o meio ambiente, com a saúde física, mental e espiritual, além de estar sempre atento porque as novidades aparecem e somem sem deixar rastros. A sociedade do espetáculo é feita de aparências, é mera propaganda. Egoístas, todos buscamos a satisfação pessoal, mas também é preciso zelar pela auto-imagem.
Fazendo da cultura um mero entretenimento, chegamos a uma contraposição de dois apocalipses literários que, segundo o teórico da comunicação Neil Postman, marcaram o século XX: 1984, de George Orwell e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Duas tentativas de descrever as catástrofes políticas alimentadas pelos devaneios ideológicos. Orwell preocupa- va-se com a supressão de liberdade gerada por estados totali- tários: com o intuito de garantir a igualdade entre os homens, muitos regimes fizeram todos iguais, embora alguns fossem mais iguais do que outros, dependurando-se numa burocracia privilegiada que determinava as condutas permitidas pelo Estado. Já Huxley se preocupava com algo um tanto mais sutil: ao invés de sermos dominados por uma “cultura ideológica”, sermos drenados pela irrelevância ao ponto de entrarmos num processo de desaculturação. Uma variante das invasões bárbaras, desta vez sem Godos, Visigodos ou Atila, o Huno; o barbarismo chega de forma pacífica e muito voluntária, por redes wi-fi, aplicativos e gadgets eletrônicos para, como diria Postman, nos “divertirmos até morrer”.
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Leitura instigante e lúcida. Excelente livro. Adquiri no lançamento e gostei muito
Muito legal, fiquei curiosa, Chiuso!