O último crítico literário do Brasil
"Quem sabe só literatura, não sabe nem literatura."
Resgatamos uma entrevista de Wilson Martins para José Castello, publicado no Caderno 2 do Estadão nos longínquos anos 90, onde o crítico fala sobre a morte da crítica literária no Brasil, substituída nos jornais pela resenha literária, do fim das revistas culturais e que já nos alertava: “Quem sabe só literatura, não sabe nem literatura.”
Boa Leitura!
Caderno 2 - Você é o último crítico literário brasileiro?
Wilson Martins - Provavelmente, sim. Eu me formei numa tradição que praticamente desapareceu, a do jornalismo literário francês. Costumam dizer, de fato, que no Brasil eu sou o último dessa raça. Deve ser verdade. Venho de um tempo em que todos os grandes jornais tinham o seu rodapé literário, cada um com seu crítico titular, com a obrigação de comentar e avaliar com regularidade a produção literária contemporânea. Esse padrão predominou, no Brasil, até os anos 50. Depois, começou a desaparecer.
Caderno 2 - Por quê?
Martins - A morte da crítica literária no Brasil é uma conseqüência do aparecimento de um novo jornalismo, infuenciado pelo estilo americano. Devo lembrar que morei quase 30 anos em Nova York e, portanto, tenho autoridade para falar do assunto. Os jornais americanos, há muito tempo, não têm mais críticos literários. Eles foram substituídos pelos resenhistas. As editoras mandam seus lançamentos diretamente para os editores dos jornais, que, sem muitos críticos, saem à procura de autores de resenhas. Hoje, exagerando um pouco, pode-se pensar que qualquer um pode escrever sobre qualquer livro. Há, é verdade, um bom número de professores universitários gabaritados que se tornaram resenhistas literários. Mas eles já não escrevem mais crítica literária. Nos EUA, se você deseja ler artigos de fôlego, deve comprar o New York Review of Books.
Caderno 2 - O que aconteceu com a crítica literária?
Martins - Sua morte, lenta, pode ser atribuída a várias razões. Devemos pensar, primeiro, nos próprios críticos. Nas faculdades de letras, a crítica tradicional, de estilo oitocentista, começou a perder terreno a partir dos anos 60 para o estruturalismo e para a nova crítica. Isso trouxe graves conseqüências para toda uma geração de especialistas em literatura. Os estruturalistas fazem teoria pela teoria. Perdem-se em suas elaborações intelectuais, em seus esquemas cifrados e deixam as obras em segundo plano.
Caderno 2 - E o que se passou na imprensa?
Martins - Nos jornais, propagou- se com rapidez a idéia de que a crítica literária não tem mais importância e o importante, agora, é a resenha literária. Ora, a resenha não tem pretensão crítica, ela é apenas um instrumento de apresentação e de divulgação do livro. De fato, a resenha serve muito mais à publicidade dos livros do que a crítica. Essa nova realidade agradou aos editores, que passaram a ter publicidade farta e, mais que isso, gratuita. Basta ver como é pequena a publicidade paga nas páginas literárias. Agradou, também, aos donos de jornais, que, com os cadernos de resenhas, passaram a ter um novo produto barato e de forte apelo. E agradou ainda aos estudantes de letras e aos professores menos experientes, que passaram a ter espaço para escrever e ainda encontraram uma forma de ganhar alguns trocados.
Caderno 2 - Não há mais espaço para críticos no velho estilo?
Martins - Penso que eu sou o último crítico formado nessa tradição francesa, que procura conciliar a atualidade com o rigor. Críticos não se limitam a resumir os livros, a vendê-los, mas dizem se eles são bons ou ruins e põem suas cabeças a prêmio quando se arriscam a dizer por quê. É claro que, muitas vezes, os críticos erram, pois o erro faz parte de qualquer jogo. Mas, ao contrário dos resenhistas, os críticos se arriscam. Por isso eles devem ter, obrigatoriamente, um arsenal teórico para iluminar seus objetos. Já dos resenhistas não se exige aparato teórico algum. Quanto aos novos críticos, formados na onda estruturalista, eles se fecham em seus guetos intelectuais e passaram a falar entre si, esquecendo-se das obras. Nas universidades, os alunos não lêem mais as obras literárias, lêem as críticas. Os próprios escritores passaram a escrever, em muitos casos, para agradar a seus críticos. E a crítica fica felicíssima, porque a obra passa a ser, apenas, uma confirmação de suas teorias. Essa, infelizmente, é a fisionomia da crítica literária brasileira nos últimos 30 anos.
Caderno 2 - Não se esboça nenhuma reação?
Martins - Nos últimos quatro ou cinco anos, nas universidades brasileiras, parece se anunciar uma reação a esse culto da teoria pela teoria. A verdade é que essa onda da teorização se esgotou e está na hora de voltarmos aos estudos clássicos da crítica literária. A ênfase na teoria criou, porém, uma espécie de vazio intelectual. Os estruturalistas não se interessam por nada que esteja fora de suas teorias. Só agora se começa a substituir o estudo da literatura isoladamente pelo estudo dos contextos culturais em que ela aparece. É exatamente isso o que fiz na História da Inteligência Brasileira; por isso é história da inteligência, e não história da literatura. Acho que essa tendência, que começa a reaparecer, é muito interessante. Na juventude, eu estudei Direito. Há um provérbio que aprendi na faculdade de que gosto muito e merece ser citado: "Quem sabe só Direito, não sabe nem Direito". Eu tocaria, apenas, a palavra Direito por literartura. "Quem sabe só literatura, não sabe nem literatura". No contexto terior, os escritores escreviam para os críticos e os críticos escreviam para eles mesmos. Havia um enorme vazio, que agora começa a ser preenchido.
Caderno 2 - Quais são as grandes novidades da literatura brasileira contemporânea?
Martins - Não há grandes mudanças de enfoque e de concepção em nossa literatura. O mais importante talvez seja o enfraquecimento evidente do regionalismo. Nossa tendência sempre foi regionalista, mas agora ela está desaparecendo em favor de uma visão mais universal. Os poetas de hoje não têm mais a visão regionalista que tinham, por exemplo, os poetas do modernismo. Eles deixaram as questões locais de lado e passaram a tratar os grandes temas humanos. Na ficção, ainda que em menor intensidade, essa mudança também pode ser detectada. Veja um escritor como o gaúcho Assis Brasil. Ele está escrevendo uma verdadeira história social do Rio Grande do Sul, mas rompe com a tradição porque não se detém em um enfoque puramente regionalista. O mesmo se passa, aqui no Paraná, com um romancista como Cristóvão Tezza. Romances como Trapo e o recém-lançado Uma Noite em Curitiba são excelentes exemplos dessa mudança de rumo em nossa produção contemporânea. Tezza dá um passo além em relação ao que fazia, por exemplo, um Érico Veríssimo. Mas isso não ocorre apenas aqui no Sul. A literatura brasileira, como um todo, está se abrindo para um enfoque mais universal. E isso é muito bom.
Caderno 2 - Não há renovação na crítica literária?
Martins - Infelizmente, não. Ainda não surgiu uma geração que substituísse aquela de Tristão de Ataíde, Antonio Candido, Álvaro Lins. Continuamos esperando. Há, sim, os resenhistas. Mas a resenha, por mais bem feita que seja, é sempre um trabalho de vulgarização, e não de análise. A resenha tem um caráter noticioso, enquanto o caráter da crítica literária é judicativo, isto é, o que define a crítica é o poder de julgar. O leitor da resenha quer ser informado; o leitor da crítica quer ser obrigado a pensar.
Caderno 2 - Os escritores contemporâneos conseguem pensar em si mesmos?
Martins - Eu sou um otimista. Depois da morte de Drummond, as pessoas se sentiram tão solitárias que parecia que a literatura brasileira ia acabar. Mas não era nada disso. Surgiram grandes poetas como Afonso Romano de Sant'Anna e Ivan Junqueira, que estão um passo além de Drummond, no sentido de que escrevem uma poesia universal. Afonso escreveu, por exemplo, um longo poema sobre a catedral de Estrasburgo. Quem poderia pensar em algo assim algum tempo atrás? Na ficção, essa tendência universalizante não é tão forte, mas existem importantes esforços individuais.
Caderno 2 - O que você pensa da onda de biografias brasileiras?
Martins - A produção, em geral, é boa. Nossos biógrafos acertaram a mão, sobretudo, no que diz respeito à qualidade das pesquisas. Até pouco tempo, os biógrafos brasileiros se contentavam em trabalhar a partir de duas ou três informações. Eram preguiçosos. Agora não, existe uma ênfase na pesquisa longa, no trabalho ousado, e aqui nós somos obrigados a agradecer a influência dos americanos. Na literatura brasileira, em geral, há uma tendência de volta daquilo que os estruturalistas chamavam, pejorativamente, de "historicismo". Mas não é historicismo, é simplesmente um esforço de estudo da história intelectual.
Caderno 2 - As listas de mais vendidos proliferaram nos suplementos culturais da imprensa brasileira e, hoje, ditam o gosto do leitor. Como você as avalia?
Martins - Essa tendência a cultuar os best sellers é péssima. O que está havendo no Brasil, nos últimos anos, é a tradução indiscrimianda de livros que não têm nenhum interesse literário. Sobretudo, desses romances americanos que só se baseiam no enredo, só pensam na ação. São livros que, literariamente, não têm valor algum. É a literatura de distração. Não há mal nenhum nela, devo dizer; mas ela não pode ocupar o espaço que deve ser destinado aos grandes autores. Há, também, essa literatura de qualidade duvidosa que se baseia na auto- ajuda e no misticismo. Os livros de auto-ajuda são enganadores, porque só iludem o leitor. Os livros de misticismo, por sua vez, agravam a tendência mística dos brasileiros, que é maléfica. O brasileiro está sempre esperando que seus problemas sejam resolvidos pelo sobrenatural. Há uma crença nacional no milagre, que só vem reforçar nossa tendência à evasão. É com essa crença que a literatura mística trabalha.
Caderno 2 - Você leu O Xangô de Baker Street, de Jô Soares? Leu Benjamin, de Chico Buarque? O que achou?
Martins - Não li nenhum dos dois. Mas acredito sinceramente que o sucesso desses livros resulta menos de sua qualidade literária e mais da fama de seus autores, de seu prestígio na mídia. Jô Soares e Chico Buarque podem escrever qualquer coisa, que serão sempre lidos. Eles, a rigor, não podem sequer serem considerados escritores profissionais. E também, é bom que se diga, não se espera que seus livros revolucionem literatura alguma. Posso falar de Chico Buarque, de quem já li Fazenda Modelo e Estorvo. Fazenda Modelo é apenas um recozimento de Family Farm, de Georges Orwell. Estorvo, por sua vez, é o recozimento de Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, que aliás é um livro bem mais interessante. A relação entre Estorvo e Zero é tão escandalosa que me espanta como,na época do lançamento de Estorvo, nenhum resenhista tenha a ela se referido. É a mesma temática e, muitas vezes, apresenta os mesmos episódios. Chico Buarque é um grande músico, mas como escritor é apenas um autor de segundo cozimento. Ainda não li Benjamin, mas estou curioso para ver de onde ele o tirou. Não creio, sinceramente, que Chico Buarque tenha muito futuro como escritor.
Caderno 2 - O que você pensa de um autor como Paulo Coelho?
Martins - Grande parte de seu sucesso, é verdade, não passa de um efeito de marketing. Mas não se pode reduzir as coisas a isso. Seus livros respondem a uma necessidade espiritual, que não é apenas brasileira, mas universal, tanto que seus romances se tornam sucesso de venda em todas as partes do planeta. Paulo Coelho é autor de uma literatura que não faz pensar, ela apenas confirma aquilo de que os leitores já estavam convencidos antes de abrir o livro. Todos os livros de misticismo vendem muito bem. Paulo Coelho talvez tenha estourado por ter sido o pioneiro. Além disso, ele era roqueiro e parceiro de Raul Seixas. E, se você ouvir com cuidado, verá que a música de Raul Seixas é um pouco simétrica à literatura de Paulo Coelho. Os livros de Paulo Coelho nos dão sempre a impressão de que ele possui um segredo que não pode ser comunicado a ninguém. Mas você não pode entender a literatura de um país sem levar em conta fenômenos como ele. O Brasil é Rui Barbosa, é Euclides da Cunha, mas é também Paulo Coelho. Não podemos desprezá-lo como algo insignificante. Não sou leitor de seus livros nem seu admirador, mas ele deve ser aceito como um dado da vida brasileira contemporânea. Ele não acrescentou absolutamente nada à nossa vida intelectual; mas abriu uma janela mística na qual muitas pessoas se espelham. Não devemos desdenhá- lo. Paulo Coelho é um fenômeno muito brasileiro.
Caderno 2 - O que você pensa da nova geração de críticos que está hoje na maturidade e inclui nomes como Silviano Santiago, Flora Sussekind e Luís Costa Lima?
Martins - São nomes, sem dúvida, de primeiríssima qualidade, que conseguiram escapar desse período negro regido pela teoria pura, e prosseguiram intactos com suas obras. Mas aqui deve ser feita uma distinção: nenhum deles é, a rigor, crítico literário. Silviano, Flora, Costa Lima são, na verdade, ensaístas literários, e não críticos. Voltamos aqui ao início de nossa conversa. O crítico é o sujeito que escreve sobre a literatura corrente e que se expõe no fogo nas novidades. Ele põe seu pescoço à prova, expõe suas opiniões e pode acertar ou errar. São célebres os grandes erros cometidos por críticos de prestígio; eles são, apenas, o ônus da profissão. O ensaísta literário, ao contrário, escreve sobre os grandes autores do passado, sobre as grandes tendências. Não fazem, a rigor, crítica literária. Você não pode, hoje, fazer a crítica de uma peça de Shakespeare, ou de um romance de Thomas Mann. Esses autores estão acima da crítica, acima das considerações a respeito do bom e do ruim. Eles se tornam, apenas, bjetos de ensaio literário. O ensaísta pode repensar os grandes temas, retraçar as grandes linhas, mas não vai escrever para dizer se tal romance de Machado, ou de Faulkner, é bom ou ruim. Hoje temos, de um lado, os ensaístas preocupados com o passado; de outro os resenhistas voltados para o presente imediato. Críticos, mesmo, não temos mais.
Caderno 2 - O desaparecimento das revistas literárias é causa ou efeito desse quadro?
Martins - As duas coisas estão ligadas. O lugar do ensaísta é a revista literária. Mas, se elas não existem mais, ele se volta para a imprensa diária. A diferença entre o crítico e o ensaísta é simétrica a distância que separa um corredor de 100 metros rasos de um maratonista. O ensaísta é o corredor de maratona. Já o crítico, se não é um corredor de 100 metros rasos, é pelo menos um atleta dos 400 metros com barreiras. Mas, para o leitor comum, os dois personagens, crítico e ensaísta, estão hoje confundidos. A imprensa literária alimenta essa confusão.
Caderno 2 - A que você atribui o desaparecimento das revistas literárias? Não há mais lugar para elas?
Martins - Esse não é um fenômeno apenas brasileiro. Nos EUA, hoje, temos apenas a New York Review of Books. Na França, de importante mesmo só o Magazine Littéraire. Mesmo os países mais adiantados têm, hoje, apenas uma grande revista. Há, ainda, as revistas universitárias, mas elas aparecem apenas uma ou duas vezes por ano. E, se você pega uma revista inglesa, ela só trata de Shakespeare, das Bronte e de Bernard Shaw. As francesas só se interessam por Racine, Corneille e Rabelais. Há, em geral, uma grande repulsa ao presente. Por isso não há crítica.
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