Soidades amargas, suspiros amantes: Tangências e Traço de Giz, de Miguelanxo Prado
O autor de quadrinhos adultos espanhóis? Um quadrinista galego? Um artista internacional? Quem é Miguelanxo Prado e por que deveríamos ler as suas hqs?
Soidades amargas, suspiros amantes: Tangências e Traço de Giz, de Miguelanxo Prado
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Capítulo 01 - No último episódio de “A história dos quadrinhos espanhóis…”
Tangências e Traço de Giz, os dois gibis de Miguelanxo Prado recentemente lançados no Brasil, existem e são um sucesso porque o quadrinista surgiu em uma época em que estavam presentes as condições que faltaram a Esteban Maroto.
No início do século XX, a Espanha era a terra de uma incipiente, mas rapidamente crescente, cultura de quadrinhos. Diversas revistas, principalmente de caráter infantil ou juvenil, disputavam a atenção dos leitores. A revista Pulgarcito, da que se tornaria a gigantesca editora Bruguera, tinha tiragens de 300 mil exemplares na década de 20.
Com o início da guerra civil, em 1936, o primeiro boom dos quadrinhos espanhóis foi interrompido. Quadrinistas foram presos e mortos e persistiram apenas revistas que eram peças de propaganda. Os exemplos mais notáveis eram as revistas El Pueblo en Armas e Pionero Rojo, publicadas por republicanos, e as Flechas e Pelayos, publicadas por franquistas.
O fim da guerra, em 1939, não levou apenas à retomada dos quadrinhos espanhóis ao status que se encontravam antes do conflito. O sucesso foi multiplicado. A TBO, uma das revistas mais conhecidas do período, teve tiragens de 350 mil exemplares em 1952. A partir desse momentio, se pode falar na existência de uma indústria dos quadrinhos no país. Diversas revistas e formatos, grandes tiragens e o surgimento de seus personagens mais conhecidos.
Entre os anos 40 e o final dos anos 70, os quadrinhos na Espanha passaram por um período de prosperidade e estabilidade apoiado principalmente em dois gêneros: a aventura de ficção histórica na linha do Príncipe Valente, de Alex Raymond, e o humor slapstick, inspirado no trabalho do quadrinista franco-belga André Franquin.
Essa indústria estava apoiada em três cidades. Madri era uma delas, mas o seu papel era secundário: lá, continuariam sendo publicados gibis favoráveis ao franquismo até o final da década de 40, inclusive pelo braço editorial da Falange Española Tradicionalista y de las Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalista [FET y de las JONS, o partido único do regime franquista]. O exemplo mais conhecido é a Flechas y Pelayos, resultado da fusão das duas revistas franquistas publicadas durante a guerra.
Entre os anos 40 e metade dos anos 50, a cidade mais importante para os quadrinhos espanhóis era Valencia. Lá que estava a Editorial Valenciana, casa dos personagens mais populares do período, El Guerrero del Antifaz, de Manuel Gago García, e Roberto Alcázar y Pedrín, de Juan Bautista Puerto e Eduardo Vañó Pastor. As séries desses personagens estão entre as mais longevas da história da Espanha: a do Guerrero del Antifaz foi publicada entre 1944 e 1966 [quando começou a ser reeditada em cores], em 668 números. Roberto Alcázar y Pedrín foi publicado entre 1941 e 1976, alcançando o recorde de 1219 números.
Finalmente, a cidade mais importante para os quadrinhos da Espanha, principalmente a partir da segunda metade da década de 50, era Barcelona. Lá estava sediada a editora Bruguera, casa do Capitán Trueno. Criado em 1956 por Victor Mora e Ambrós, esse personagem se tornaria um dos mais populares da história dos quadrinhos espanhóis. No processo, transformaria a Bruguera em uma editora que quase exercia um monopólio sobre a produção de gibis daquele país. A Bruguera também publicaria, a partir de 1958, Mortadelo y Filemón, de Ibañez, série de humor que provavelmente seja o gibi espanhol mais conhecido do mundo.
Foi nesse contexto de domínio da Bruguera que Esteban Maroto começou a sua carreira nos quadrinhos. Como eu expliquei com mais detalhes no ensaio sobre 5 por Infinito, a série foi criada no contexto da agência Seleciones Ilustradas. Criada por Josep Toutain e sediada em Barcelona, a Seleciones Ilustradas intermediava a relação de quadrinistas espanhóis com editoras de outros países. Assim, formou uma geração com acesso a publicações estrangeiras e com a pretensão de fazer quadrinhos sofisticados e adultos, e não infanto-juvenis como aqueles que eram publicados no seu país. No resto da Europa já existiam publicações desse tipo: a Linus começou a ser publicada na Itália em 1965.
As séries produzidas pela Seleciones Ilustradas pensadas para o público estrangeiro não fizeram muito sucesso interno e são tratadas normalmente como uma nota de rodapé na história editorial espanhola. Como diria o roteirista Alfonso Font, naquela época, comentando a repercussão do seu trabalho:
“Alguns podem duvidar se nasceram na Espanha ou nas antípodas. Ser editado em um monte de países diferentes é elogioso, mas não ser editado no seu próprio país é frustrante”
A grande novidade no panorama editorial espanhol dos anos 60 foi o início da publicação dos gibis da DC Comics no país. Mesmo eles, no entanto, eram importados do México, onde eram editados pela Novaro.
Essa situação somente mudaria a partir de 1975, com a morte de Franco, que comandava o país desde o final da Guerra Civil Espanhola [quase quarenta anos antes]. A morte do ditador, que ocorreu em um momento de crise econômica e tensão política, foi o início da transição rumo à democracia e de uma revolução social no país. É nela que se encontra a origem de “La movida madrileña”, o movimento contracultural que se espalharia pela Espanha na década de 80.
Nos quadrinhos, isso se traduziu em desconfiança do público: os gibis passaram a ser vistos como propaganda do regime, especialmente as aventuras históricas como El Guerrero del Antifaz e El Capitán Trueno [cujo subtexto crítico ao regime franquista somente passou a ser reconhecido recentemente]. A resposta veio através da erupção de gibis como os de Maroto. Era o início do que se chama de “boom del cómic adulto español”, ciclo que somente terminaria aproximadamente vinte anos depois.
É aqui que queria chegar com essa retrospectiva histórica. “El boom del cómic adulto” é um dos períodos de maior efervescência criativa da história dos quadrinhos. Uma geração de quadrinistas especialmente talentosos [Maroto, Carlos Gimenez, Jordi Bernet, Alfonso Font: todos nasceram entre 1941 e 1946] e experientes encontraram, no momento de sua maturidade artística, um público sedento por um novo tipo de hq, durante um período de transição do país.
Existem algumas características marcantes nos gibis publicados nesse período.
A primeira dessas características é o formato da publicação. Em 1977, o milionário ítalo-argentino Roberto Rocca fundou a editora Nueva Frontera e trouxe, para a Espanha, o formato de revistas antológicas de quadrinhos adultos que já triunfara na Itália e na França. Foram cinco no primeiro ano e três no segundo de existência da nova editora. Dessas oito revistas, três marcariam época: Totem, Blue Jeans e Bumerang.
Esse seria o formato característico do período. No auge do boom, durante a década seguinte, eram simultaneamente publicadas trinta revistas antológicas de quadrinhos adultos no país, algumas com tiragens de 50 mil exemplares ao mês, dignas de uma revista de caráter generalista.
Essas revistas publicavam histórias curtas ou histórias longas, de forma fracionada. Nesse último caso, como no modelo francês, as histórias longas poderiam ser posteriormente reunidas em um álbum. Esse formato, por sua vez, dificilmente era utilizado para publicações inéditas.
A segunda característica é a existência de um conflito estético.
Esse conflito opunha os defensores da “línea clara” e os da “línea chunga”. Eram quadrinistas identificados com a “línea clara” aqueles que subiram no ônibus europeu do revival da ligne claire franco-belga. O traço é espesso e decorativo, a narrativa é clara e faz uso de recursos cinematográficos. O seu representante mais conhecido, naturalmente, é Hergé, o autor de Tintin.
O estilo foi bem definido pelo crítico Juan D’Ors no ensaio Manifiesto del “Nuevo Renacentismo” (o que diablos es eso de la “línea clara”), publicado na revista madrilenha La Luna, em abril de 1984:
) A moderna adaptação do estilo de Hergé não é apenas válida como um retorno ao classicismo, mas também como uma constante renovação desse estilo. A linha de Hergé é tão esquemática e, ao mesmo tempo, tão definida, que é fácil lhe dar continuidade e modernizar-lhe. É esse o verdadeiro interesse do “Novo Renascimento”: é uma atitude clássica e, ao mesmo tempo, moderníssima. Os desenhistas que não criam, plagiam; os que renovam, são criadores. E, ao mesmo tempo, Hergé permanece único e inimitável.
II) O “Novo Renascimento” não é apenas uma atitude estética e estilística: também é uma atitude ética e narrativa.
III) Como Hergé, o Mestre, nós defendemos a Aventura, livre de intelectualismo e sem “mensagem transcendente”. O que não exclui a ironia e o deboche da nossa sociedade. Se a nossa estética é profunda, o nosso fundo é, principalmente, simples e diretamente “contar uma história”.
Os quadrinistas da línea clara costumavam ser publicados pelas revistas editadas por Joan Navarro, como a Cairo. Lá também eram publicados autores de ligne claire europeus dos anos 50, como Edgar P. Jacobs, ou contemporâneos, como Jacques Tardi e Yves Chaland. Os principais quadrinistas espanhóis de línea clara são Daniel Torre e Pere Joan:
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Os quadrinhos espanhóis de línea clara desse período não eram necessariamente infantis. Mas eles não se importavam em parecer pelo menos juvenis e aventurescos. Navarro não se constrangia de identificá-los como “tebeos”, ou pelo menos “neotebeos”, palavra equivalente a “gibi” em português — a sua origem é a revista TBO, dos anos 50.
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