Soidades amargas, suspiros amantes: Miguelanxo Prado, quadrinista galego
O terceiro capítulo sobre os quadrinhos de Miguelanxo Prado
Soidades amargas, suspiros amantes: Tangências e Traço de Giz, de Miguelanxo Prado
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Capítulo três: Miguelanxo Prado, quadrinista galego
Existe um argumento a se fazer no sentido de que a tradição dos quadrinhos galegos é anterior à dos quadrinhos espanhóis.
Como em diversos outros países, na Espanha se defende a existência de um antecedente remoto nacional que seria a origem da linguagem das hqs. No caso espanhol, esse antecedente seria As Cantigas de Santa María, do século XIII, cuja autoria é atribuída ao rei Afonso X. Afonso X, diga-se de passagem, poderia ser perfeitamente considerado como Rei Nerd: fazia gibi, ordenou a produção do Libro de los juegos [uma compilação de regras e estratégias de jogos de mesa e de dados] e era conhecido como “el sabio”.
Quis plus vis est, Rem aut Hulk?
Afonso X não era galego. Mas As Cantigas de Santa María foram escritas em galego-português, idioma medieval do leste da península ibérica que, como você deve ser capaz de imaginar, deu origem ao galego e ao português. O galego-português medieval era utilizado como um idioma culto, especialmente para fins líricos, pela sua sonoridade.
Também existem uma série de quadrinistas de renome originários da Galícia. Suso Peña, que desenhava cenários para Esteban Maroto em 5 por Infinito, é da mesma geração dos quadrinistas da Seleciones Ilustradas. O ilustrador Victor Moscoso, um dos colaboradores da Zap Comix e capista de discos do Jerry Garcia, nasceu em Culleredo, a cidade em que está localizada o aeroporto de Coruña. José Luis García-López se mudou com a sua família para Buenos Aires ainda na sua infância, mas é natural de Pontevedra, uma das maiores cidades da Galícia. Das Pastoras é de Riveira, outra pequena cidade próxima de Coruña. David Rubín é de Ourense, a terceira maior cidade da Galícia.
Esses quadrinistas, no entanto, não fazem propriamente quadrinhos galegos. Eles participam de outras tradições das hqs: a da Seleciones Ilustradas e do Grupo de la Floresta, no caso de Peña; a underground psicodélica sessentista, no caso de Moscoso; a dos super-heróis, no caso de García-López. Das Pastoras mistura Richard Corben e Moebius. David Rubín, um pouco de tudo: o seu traço lembra o de quadrinistas ecléticos como Paul Pope ou Rafael Grampá.
A banda deseñada galega, por sua vez, é mais do que uma denominação de origem. Ela é um estilo próprio, que tem a sua origem no início dos anos 70, principalmente no trabalho de dois artistas, Reimundo Patiño e Xaquín Marín.
A importância de Patiño e Marín para os quadrinhos galegos está materializada na hq 2 Viaxes, considerada pela crítica como o primeiro álbum de BDG. A hq, de 128 páginas em preto e branco, reúne duas histórias, cada uma de autoria de um desses quadrinistas. A primeira, de Marín, é intitulada O longo camiño de volta dende as estrelas; a segunda, de Patiño, A saga de Torna no Tempo.
Ainda que cada uma das histórias seja obra de um dos autores, as duas tem pelo menos três elementos comuns que se tornariam características definidoras da BDG.
Conforme diz Xulio Carballo Dopico, autor de uma fantástica tese de doutorado sobre quadrinhos galegos [Para unha historia da Banda Deseñada Galega: a narración a través da linguaxe gráfico-textual], isso não é de se estranhar:
[As histórias] “possuem um nexo narrativo muito semelhante, mas isso não é estranho, uma vez que os dois autores eram muito amigos e dividiam o material de referência que passava pelas suas mãos: filmes, quadrinhos, literatura, etc, motivo pelo qual as suas influências e visões artísticas dividiam um certo espectro comum, independentemente do seu estilo pessoal. Nesse sentido, pode-se destacar o gosto pelos livros de ficção científica que era tanto de Patiño quanto de Marín: Philip K. Dick, Aldous Huxley, George Orwell ou, mais próximo do terror, Lovecraft”.
Assim, as duas hqs nos contam histórias de ficção científica pessimista, ambientadas em uma Galícia distópica. Como diz Carballo:
“Tanto Xaquín Marín como Reimundo Patiño desenvolvem nas suas narrações a projeção de galegos que se sentem estrangeiros no próprio país, observadores da perda de identidade, de valores e de espírito de superação dos problemas que afundam aos poucos a Galícia, uma terra que após séculos de ‘centralismo deformante’, nas palavras de Antón Patiño, não é reconhecida pelos seus próprios habitantes.
[…] Através das convenções do gênero científico, a emigração, o capitalismo alienante, o complexo autodestrutivo e regionalista ou a industrialização sem freios aparecem refletidos sob o manto das viagens intergaláticas e as lutas entre seres de diferentes tempos e lugares, mas que na verdade só representam uma gente e uma cultura, a galega”.
Visualmente, as páginas de O longo camiño de volta dende as estrelas e A saga de Torna no Tempo mais parecem telas. Não existe uma grade de quadrinhos regular, e cada página foi claramente pensada como uma unidade que se desdobra, de forma orgânica, em diferentes quadrinhos:
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Isso faz com que as páginas pareçam pinturas. Especificamente, pinturas vanguardistas, sem parentesco aparente com outras histórias em quadrinhos. De novo conforme Carballo:
“Os dois apresentam uma estética vanguardista, e mesmo underground, como costumam ser definidos, e totalmente autossuficientes, ao não poderem ser enquadrados de forma clara sob a influência de nenhum outro autor de quadrinhos. Ainda que existam alguns traços e temas que os aproximem de outras obras e/ou autores, o seu estilo é totalmente inovador. Xaquín Marín, nesse sentido, sempre afirmou não seguir ninguém e se proclamou autodidata”.
2 Viaxes, portanto, não foi influenciada diretamente por outros quadrinhos, principalmente espanhóis. As suas referências são da literatura de ficção científica estrangeira, que unia os interesses de Marín e Patiño, e do mundo da arte.
Mais do que nos quadrinhos espanhóis que lhe eram contemporâneos, a origem da BDG está no Rexurdimento, movimento artístico galego do século XIX que procurava revitalizar a cultura galega depois dos “Séculos Escuros”, em que o uso do galego foi preterido em favor do castelhano e do português.
Assim, a denúncia que Marín e Patiño fazem da exploração da Galícia pelo governo espanhol lembra uma versão em ficção científica pulp do poema Castellanos de Castilla, formado por Rosalía de Castro a partir de um canto popular. É um dos poemas que forma a obra Cantares Gallegos, de 1863, obra inaugural do Rexurdimento:
En verdade non hai, Castela,
nada coma ti tan feo,
que aínda mellor que Castela
valera dicir inferno.
¿Por que aló fuches, meu ben?
¡Nunca tal houberas feito!
¡Trocar campiños floridos
por tristes campos sen rego!
¡Trocar tan claras fontiñas,
ríos tan murmuradores
por seco polbo que nunca
mollan as bágoas do ceo!
Mais, ¡ai!, de onda min te fuches
sen dó do meu sentimento,
e aló a vida che quitaron ,
aló a mortiña che deron.
Morriches, meu queridiño,
e para min non hai consolo,
que onde antes te vía, agora,
xa solo unta tomba vexo.
O uso da linguagem dos quadrinhos, nesse contexto, é consequência da necessidade de produzir um estranhamento que faça o leitor perceber a anormalidade das condições da Galícia real. Diz Carballo [citando, ao fim, Miguel Angel Muro Munilla e o seu livro Análisis e interpretación del cómic]:
“É por isso que os dois autores se vêm obrigados a aplicar um espectro invertido na hora de difundir esse sentimento: através de uma Galícia com o tempo e o espaço deformados, se projeta uns acontecimentos que escapam à realidade cotidiana para que seja o próprio leitor quem se depare com essa verdadeira realidade que não é capaz de ver no seu dia a dia, porque, como se um quadro fosse, a realidade as vezes tem que ser vista com um certo prisma de distanciamento para ser compreendida na sua totalidade. Assim, esse “estranhamento” ao que se submete o leitor seria duplo: por um lado, teríamos o estranhamento produzido por um tempo e um lugar distópico e, por outro, o do próprio meio, os quadrinhos, considerando que ‘a utilização do signo icônico já supõem um estranhamento em relação à comunicação usual’.”
Como última característica, finalmente, está aquele caráter reivindicativo da cultura galega que Patiño e Marín trouxeram do Rexurdimiento. Podemos dizer que 2 Viaxes apresenta a cultura galega através da denúncia das mazelas político-sociais da região. Nas duas histórias da hq, região é uma Arcádia que deve ser restaurada pelo regresso de um de seus filhos, em um empreendimento fadado ao fracasso.
Esse fatalismo é o sentimento extremamente galego: a palavra mais conhecida do idioma, morriña, descreve uma nostalgia triste pela terra natal. O fenômeno social mais conhecido da Galícia é a migração: a Galícia é um lugar que se abandona em busca de uma vida melhor. Sem ir mais longe, todos os quadrinistas citados até aqui emigraram da Galícia; até mesmo Martín e Patiño moravam em Madri. O tom fatalista disso é evidente em Castellanos de Castilla, o lamento de uma mulher que perdeu o amado enquanto esse trabalhava nos desertos da Espanha.
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