A Megera Domada
O Encadeamento dos Seres
Por Dionisius Amêndola
Seria você, jovem leitor, capaz de domar essa megera?
W.H.Auden considerava A Megera Domada um fracasso total, uma farsa, e segundo o poeta, Shakespeare não era um autor de farsas. A peça também percorre um longo caminho de críticas, ressalvas, indignações, muito por conta do enredo, tachada de misógina, machista, grosseira e outros adjetivos menos lisonjeiros, e já em 1647 um pupilo de Shakespeare chamado John Fletcher tentou 'corrigir' a obra shakesperiana com uma peça chamada The Woman's Prize or the Tamer Tamed (não é de hoje que existem Lindelofs tentando 'melhorar' obras originais, vejam vocês!).
Mas nada disso impediu A Megera Domada de ser uma das peças mais populares do bardo inglês, mesmo sendo uma peça onde ele claramente ainda está a buscar caminhos dramáticos, saídas criativas e novos e intrincados arranjos narrativos.
Peça de forte pendor para o hilário e o escrachado, A Megera Domada pode ser interpretada como uma divertida obra sobre a disputa e as diferenças perenes entre os sexos, mas também entre classes sociais, entre irmãs, entre juventude e velhice, temas que estão presentes em várias das obras do dramaturgo, assim como estavam em Os Dois Cavalheiros de Verona. Shakespeare irá ao longo de sua carreira retomar estes temas, ampliando, aprofundando, alargando seu olhar para aquilo que nos faz humanos.
Na peça temos uma trama que envolve diversos personagens, alguns em papéis duplos (outra característica dramática de Shakespeare), que buscam encontrar seu lugar no "encadeamento dos seres" determinado por suas origens e escolhas, onde os indivíduos devem compreender, assumir e respeitar os seus devidos lugares no corpo social. Sendo uma peça dentro da peça, A Megera Domada é também uma reflexão sobre a criação teatral e como esta pode 'espelhar' e até 'educar' os espectadores.
Esta estrutura de 'peça dentro da peça', ainda que aqui não seja uma estrutura tão desenvolvida quanto nas obras futuras do bardo, permite a ele criar 'contrastes e paralelos no desenvolvimento dos temas da peça', tornando-a mais complexa e interessante no seu retrato do “relacionamento entre os sexos e das possibilidades de os indivíduos mudarem suas identidades sociais através da escolha pessoal ou da coerção."
Na peça que abre A Megera Domada temos um artesão chamado Christopher Sly, completamente embriagado ele vocifera suas 'qualidades' e 'origens', mas logo desmaia de bêbado na frente de uma taverna. Ele pode até ser um artesão – profissionais importantes e essenciais numa sociedade ainda pré-industrial - mas seus vícios o tornam apenas um 'mendigo'. Enquanto Sly dorme na rua, um nobre e seu séquito o encontram, e para pregar uma peça no desarvorado artesão, levam-no para a casa do nobre, este pede que seus criados banhem e coloquem vestes limpas em Sly, faz com que um pajem se disfarce de mulher e finja ser sua esposa. Ao acordar, Sly à princípio acha que é tudo um sonho/farsa, mas logo ele assume o papel de nobre, mas suas origens não deixam de se manifestar, seja através de seus atos, mas em especial através de sua fala, de seu modo de se expressar.
Enquanto Sly toma seu vinho e tenta fazer amor com sua 'esposa', um grupo teatral chega à casa e um tanto à contragosto de Sly é convencido a assistir uma peça: 'A Megera Domada'.
A peça apresentada ao vagabundo enobrecido trata do causo envolvendo duas irmãs e seus casamentos. Bianca e Catarina são filhas de Batista Minola, um rico comerciante da cidade de Pádua. Bianca é sua preferida, de temperamento doce, seu nome remetendo à virtude e pureza virginal, enquanto Catarina é conhecida por toda cidade por seu azedume, sua impertinência, seu linguajar mordaz e ranheta. Bianca é o objeto de desejo de vários homens de origens variadas. Há o jovem Lucêncio que chegou de Pisa e que se apaixona imediantamente por Bianca; há Grêmio, um rico e velho cidadão de Pádua; e Hortênsio um outro cavalheiro de Pádua. Três pretendentes que precisam resolver um problema antes de cortejar sua amada Bianca: conseguir um marido para a indomável Catarina.
Aquele que será a solução para todos os problemas aparece na figura de Petrucchio, um jovem cavalheiro de Verona que acaba de herdar dinheiro e terras de seu pai falecido e que agora busca uma companheira bem-nascida para ocupar seu leito e seu lugar a seu lado no comando de suas propriedades.
Ele é abordado por Hortênsio, Grêmio e Lucêntio, que lhe oferecem dinheiro para que case com Catarina, vendo a oportunidade bater à sua porta com tanta sofreguidão, Petrucchio aceita o desafio, e logo, para sua surpresa, ele se vê diante da mulher da sua vida, uma mulher não apenas bela, mas de personalidade, integridade e inteligência únicas.
Logo no primeiro encontro entre os dois, faíscas explodem, o diálogo é deliciosamente sexual, e não é difícil perceber como os dois personagens se sentem atraídos um pelo outro, não apenas pelos 'olhos' (como é comum com outros personagens shakespearianos), mas pela índole, iconoclastia e sinceridade de suas palavras e atos.
Enquanto Petrucchio e Catarina vivem seus primeiros momentos tempestuosos, Bianca brinca e seduz seus pretendentes às escondidas de seu pai. Na verdade, todos os pretendentes juram ser nobres, dignos, decentes, mas todos armam engodos para ter acesso à Bianca. Um se disfarça de professor de gramática, outro de música, um finge ser o filho de um nobre pai, outro finge ser o criado de seu amo, outro finge ser pai de um filho que não é filho, temos espelhos, disfarces e Shakespeare a mostrar as artimanhas e enganos a que nos entregamos na busca por nossos desejos. E todos eles são manipulados por Bianca, uma garota bem-educada e sagaz, que sabe usar de suas habilidades para fazer o que quer de seus pretendentes e em especial de seu pai. Apesar de mimada, ela não é nada boba.
Petrucchio é perspicaz e enxerga muito além dos outros pretendentes, e sabe que Catarina possuí tal temperamento por dois motivos: o principal sendo que ela, Catarina, sempre foi preterida pelo pai, sempre tratada como estorvo, ainda mais em comparação com Bianca, mas tal tratamento não evita que seja ela também uma garota mimada, basta ver que ela se impõe tanta através de palavras quanto de pancadas – ela protagoniza duas cenas de violência do tipo comédia pastelão - em uma dá um tapa em Bianca e outra bate em um servo de Petrucchio. Portanto a educação de Catarina por Petrucchio, seu domar de sua personalidade, é uma forma de fazer com que ela abandone hábitos de uma garota que sempre teve tudo o que sempre quis, que nunca teve que trabalhar por sua comida, que nunca precisou mendigar por nada, sequer pedir por alguma coisa, e sempre teve seus desejos atendidos, mesmo diante do tratamento inferior que seu pai lhe dava em relação à sua irmã, Catarina nunca deixou de ser uma garota rica e privilegiada.
É isso que Petrucchio quer que ela entenda, que privilégios, riqueza, nobreza, são coisas que demandam responsabilidades e deveres, obrigações e compromissos. Sua educação, seu domar, não é aquele de um subalterno, de um servo, mas o de um aristocrata, de um nobre. E a nobreza não está nas aparências, nas roupas, mas nos hábitos e costumes, naquilo que faz surgir nas sociedades o 'encadeamento dos seres'.
E se Auden embirrava com a peça por suas falhas – nem tudo é perfeito nessa vida, afinal -, ainda bem que a mesma sobreviveu até nós, que podemos nos deliciar com seus chistes e seu humor pastelão, com seu saboroso conflito entre os sexos, com seu linguajar chulo e atordoante (capazes de manter até um bêbado acordado durante a apresentação da peça!) e que hoje é inusitadamente subversiva, especialmente diante de uma plateia cada vez mais avessa às imperfeições humanas.