A Sátira a serviço de Gregório
A sátira de Gregório não é revolucionária ou libertadora, mas debochada e denunciadora dos maus costumes e valores pecaminosos.
A Sátira a Serviço de Gregório
Por Laeticia Jensen Eble
O universo barroco com todas suas implicações teve como um produto, que merece cuidadosa atenção, as obras literárias de Gregório de Mattos e Guerra (1636-1695). Gregório atuou em todos os setores da poesia: na sátira, na lírica profana e religiosa, na encomiástica, explorando todas as possibilidades da versificação. Para compreender sua produção é necessário considerar a retórica que dominava a época, a doutrina em que ele, assim como seus contemporâneos, encontrava-se imerso, o Barroco. Época marcada pela contradição e tensão, pelo conflito e dualismo: mistura de religiosidade e sensualismo, de misticismo e erotismo, de valores terrenos e carnais e de aspirações espirituais. O homem barroco e sua visão de mundo são altamente dialéticos, levando essa dualidade para dentro de suas obras, que passam pela provocação dos contrários para convergir a um ponto que une. Representante de um estilo de vida, sujeito ao caráter dilemático e contraditório da época, Gregório constitui na Bahia a expressão mais forte da poesia barroca da Colônia. Apesar de dever muito aos grandes escritores espanhóis da época, sobretudo Quevedo e Góngora, sua poesia é a primeira manifestação expressiva da mestiçagem cultural que figurava no Brasil. Sua produção local mostra-se amadurecida e extremamente prolífica na sátira. A sátira de Gregório não é revolucionária ou libertadora, mas debochada e denunciadora dos maus costumes e valores pecaminosos. Atua no sentido de manter a estrutura social, política e religiosa, fato comum a todos os grandes autores do Barroco, com elementos fortemente arraigados na psicologia comum da época, de fundamento religioso-moral.
A sátira é um estilo fortemente regrado por convenções de produção e recepção. Trabalho regido principalmente pela agudeza, caricaturização, uso de metáforas, ridicularização do sexo e julgamento de valores. A sátira barroca obedece tais regras sendo produzida em conformidade com o lugar em que é trabalhada. Situando-se a sátira de Gregório de Mattos no cenário da Bahia do séc. XVII ela expressa-se em todos os seus aspectos, condicionada socialmente dentro da discrição cortesã, do gosto vulgar, da fantasia poética.
De acordo com a lição horaciana, a poesia deve conciliar o deleite e a utilidade moral, contribuindo para melhorar os costumes e para tornar o homem mais digno. Tal concepção é aceita por grandes autores como Molière, que no prefácio de “Le Tartuffe”, expõe a sua noção de comédia como instrumento de crítica moralizadora dos costumes e das ações dos homens: “nada repreende melhor a maior parte dos homens do que a pintura de seus defeitos. É um belo golpe para os vícios expô-los ao riso de toda gente. Suportam-se facilmente as repreensões; mas não se suporta de modo nenhum a troça”. “O dever da comédia”, escreve ainda Molière, “é corrigir os homens, divertindo-os”. A sátira enquanto gênero poético, não foge a essa característica e consiste num conjunto semântico de regras fixas de organização; elaborado por mistura (hibridismo) provocando inevitavelmente em seus espectadores o riso.
A sátira produz inversões e exagerações para as quais a antítese e o quiasma são muito explorados. A sátira não tem uma unidade, é mista. É híbrida, mescla o alto e o baixo, o trágico e o cômico, o sério e o burlesco, misturando tópicas variadas da invenção retórico-poética, ampliando a sua capacidade de significação. A antítese necessária à exposição da prudência confronta os extremos para deles extrair o ponto de equilíbrio e produzir a “maravilha”. O procedimento de disposição das antíteses revela-se na agudeza, que é ao mesmo tempo dialética, na medida em que analisa as partes que se apresentam divididas (opostas, confrontadas) e retórica quando proporciona a síntese da metáfora silogística. Pela manobra da agudeza em que atua o culto dialético, a sátira estabelece uma íntima relação entre imagem e conceito, a representação poética ganha uma extensão visual, as imagens são exploradas a fim de revestir um pensamento, a imagem é ao mesmo tempo um discurso e uma representação visual.
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De que pode servir calar quem cala?
Nunca se há de falar o que se sente
Sempre se há de sentir o que se fa1a.
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A ignorancia dos homens destas eras
Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Que a mudez canoniza bestas feras.
Há bons, por não poder ser insolentes,
Outros há comedidos de medrosos,
Não mordem outros não --por não ter dentes.
Quantos há que os telhados têm vidrosos,
E deixam de atirar sua pedrada,
De sua mesma telha receosos?
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A UMA QUE LHE CHAMOU “PICA FLOR”
Se Pica flor me chamais
Pica flor aceito ser
mas resta agora saber
se no nome que me dais
meteis a flor que guardais
no passarinho melhor.
Se me dais este favor
sendo só de mim o Pica
e o mais vosso, claro fica
que fico então Pica flor.
Neste poema percebe-se claramente a manobra adotada por Gregório, que fragmenta o termo “pica-flor” extraindo os lexemas que o compõem para conferir-lhes novas significações sobre as quais baseia os seus argumentos.
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