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All Green e o “The Belle Álbum: mais forte do que a morte

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O Reverendo Green trilhou seu caminho rumo à liberdade e, principalmente, ao alívio de perdoar a si mesmo.

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jun 22, 2024
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All Green e o “The Belle Álbum: mais forte do que a morte
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All Green e o “The Belle Álbum: mais forte do que a morte

Por Maísa Carvalho

MÚSICA DE ALMA

A soul music não leva esse nome por acaso; ela sempre teve em sua essência, exatamente como a sua própria tradução expressa, uma música de alma. Impudica, sensual e corporal, a soul music, contida ou voraz, lenta ou rápida, provocativa ou neutra, parece soar como sentimos as batidas de nosso coração e o funcionamento do nosso próprio corpo. Esse gênero carrega algo de especial, com capacidade de cantar desde as injustiças do mundo até as baladas românticas feitas para namorar escondido dentro do carro. Perpassando por tantos temas, a soul music não pôde deixar de abarcar os assuntos que, nos momentos em que se sente que nada mais resta, uma força palpita em algum lugar desconhecido do coração e da mente: a força espiritual.

Os primeiros sucessos do gênero surgiram no final da década de 1950 e, a partir desse momento, o soul passou a significar, de maneira geral e independente de subgêneros, o orgulho negro e a vivacidade da alma negra pulsantes na cultura norte-americana. Contando com nomes preciosos como Sam Cooke, James Brown, Aretha Franklin, Marvin Gaye e Al Green, a música negra conquistou rádios, televisões, continentes, ouvidos e corações. Nascido do rhythm and blues e da música gospel, é fácil perceber o motivo do soul carregar consigo características como improvisações, melodias emotivas e uso de comunicação corporal: a riqueza da música não cabia em fórmulas meramente racionais; morava, justamente, no instinto, na liberdade, na criação, no espiritual, na cultura ancestral e na própria identificação dos que cantavam. Sam, James, Aretha e Marvin finalizaram, com louvor, os seus caminhos e, por aqui, ainda temos Al Green que, como muitos artistas que mudaram o mundo, passou por vitórias e tristezas que serviram, justamente, para definir a grandeza de sua arte e lapidar o seu legado no meio musical.

O PEQUENO AL

"Eu era a ovelha negra da família, o estranho" Al Green

É justamente no período de efervescência da música soul que nascia, em 13 de abril de 1946, em Dansby, uma pequena cidade no caminho de Forrest City (Arkansas), Albert Leorns Greene - ou, de maneira mais sucinta, Al Green.

O pequeno Al, como era chamado na época, foi um garoto do campo. Cora, sua mãe, certa vez afirmara à Rolling Stone: "tive aquele rapaz no chão". A vida rural marcou o pequeno Al e o cantor afirma que, antes mesmo de ter ouvido R&B ou música gospel, foi a música do campo que o tocou. Albert Greene, na época em que vivia na fazenda quando garoto, também era encantado pela natureza e pelos animais, chegando, certa vez em 2008, a afirmar que "animais fazem mais sentido do que os seres humanos a maior parte do tempo". Não é por acaso que, logo quando alcançou o estrelato, uma das primeiras coisas que fez o cantor foi comprar uma propriedade rural próxima à fazenda onde morou e, assim como o seu pai, também criou gado e cavalos. Em 1996, Al afirmava: "de vez em quando eu gosto de pegar minha caminhonete e carregar alguns fardos de feno".

Albert Leorns Greene foi o sexto de dez filhos; tinha quatro irmãos e cinco irmãs. Aquela época era difícil para uma família como a de Al. Os pais do cantor, Robert e Cora, eram primos distantes e descendentes de escravos – um avô de Al, certa vez, até fugira da vida nas plantações de algodão. A família Greene era pobre. Nem sempre todos poderiam vestir sapatos e o pequeno Al, que sempre quis uma bicicleta, nunca viu seu desejo ser realizado. Foi na dura infância, então, que Al decidira que não seria pobre no futuro.

O papel da Igreja e da religião é fundamental para que se entenda a vida e obra de Al Green. Os pais do cantor eram batistas e a família foi criada no ambiente religioso, com visitas constantes à igreja. O próprio cantor conta que a Igreja era o único local em que negros e pobres poderiam relaxar, ser eles mesmos e ficar longe de "olhares duvidosos" – levando em conta as décadas marcadas por lutas em relação à segregação racial nos Estados Unidos. Foi nesse contexto que a música gospel se tornou uma parte central das atividades da família Greene. De acordo com Al, todos da família cantavam. Robert, pai de Al, também tocava contrabaixo em diferentes grupos de R&B e Cora, a matriarca, de acordo com Al, "cantava como um passarinho".

Robert, o patriarca da família Greene, formou, então, um grupo gospel com seus filhos - com exceção de Al. O grupo começou a obter certa fama através de apresentações em igrejas próximas. Quando Al perguntava se poderia se juntar ao grupo, os irmãos debochavam dizendo que o pequeno Al era muito novo e nunca conseguiria cantar. Mas, antes de ser o Al Green, o pequeno rapaz do Arkansas já era uma criança intuitiva, sensível, talentosa e bastante determinada: a partir daquele momento, Al decidu mostrar aos irmãos que poderia cantar - e quando Al dizia que faria alguma coisa, ele, certamente, iria mesmo fazer, apesar de todas as dificuldades. O fato de a própria família ter excluído, inicialmente, Al do grupo apenas aumentou ainda mais a vontade do garoto em cantar.

Na infância, o cantor presenciou momentos delicados em relação à família. As dificuldades em virtude do dinheiro em casa eram cada vez mais constantes e, frustrado, Robert, pai de Al, descontava as dores e os problemas bebendo compulsivamente. O clima no lar da família Greene não era o dos melhores: Robert, alcoólatra, e Cora estavam sempre brigando; quando os irmãos de Al não falavam em fugir de casa, falavam sobre como qualquer dia algum deles seriam obrigados a usar uma faca ou chamar a polícia por causa de algum conflito; Al tinha a amizade dos irmãos, sendo apenas mais próximo das irmãs. Esses fatos contribuíram para que o pequeno Al fosse uma criança introvertida, sensível e insegura.

Em muitos momentos da infância de Al Green, o cantor conta que seu pai, Robert, demonstrava certas atitudes cruéis em relação à educação com os filhos. Em uma dessas histórias marcantes, Al Green contou a Jon Wilde, em entrevista que, na infância, o cantor tinha um pequeno bode de estimação chamado Billy. Certa vez, Robert diria a Cora que iria ensinar uma lição ao filho Al. Robert matou e cozinhou o bichinho de Al, dando de comer à família. Enquanto Al comia, Robert dizia, caindo em altas gargalhadas: “It’s Billy!”.

Apesar de todos os conflitos na infância e no começo de sua vida adulta, Al, quando já gozava de certa estabilidade na indústria musical, empregou a maioria de seus familiares. Em 2008, Al Green afirmava que tinha certeza do amor de seus irmãos e irmãs, mas acreditava que sua família nunca soubera externar esse amor.

A vida no campo para a família Greene já se tornara insustentável: em 1955, Robert, na intenção de trilhar os mesmos caminhos de milhares de afro-americanos que abandonavam o plantation e partiam para o norte dos Estados Unidos, colocou a família naquela mesma caminhonete GMC antiga, decidindo partir para a cidade de Grand Rapids, no estado de Michigan, e tentar a vida nas indústrias do local.

Foi em Michigan que Al experimentou outros sabores das vicissitudes da vida. Além de sofrer bullying na escola – com direito a sangrar por levar garrafada na cabeça –, Al sentia falta da vida no campo. O cantor achava Michigan cinza, triste e, como ele mesmo dizia, “cheia de pessoas desesperadas”. Mas foi também em Grand Rapids que Al Green ficou mais próximo da música. O cantor pode, finalmente, cantar com os seus irmãos, e os Greene Brothers rapidamente fizeram sucesso nas igrejas locais.

O pequeno Al, em sua primeira apresentação, logo mostrou o seu talento, presença e carisma. Não existia outro Greene como ele. Não demorou muito para que o garoto se tornasse a estrela da família. Al Green teve seu primeiro palco na Igreja e foi, substancialmente, moldado por ela. Conhecido pelo seu famoso falsetto, Green herdou tal influência de Claude Jeter, cantor gospel que também alcançava vocais impressionantes.

Mas não foi somente a música gospel que fascinou Al Green. Após a sua imersão no mundo da música, o cantor começou a se interessar, também, por R&B e música popular. Green contava que ficou instigado por esses gêneros quando Robert disse certa vez “nunca traga um disco de músicas assim para dentro de casa”. O primeiro que Al escutara foi Sam Cooke e depois Al Green também passou a escutar e estudar, incessantemente, Jackie Wilson, James Brown, e admite, ainda, que adorava Elvis Presley.

Impulsionado pelo R&B, Al foi convidado por Lee Virgins – um de seus maiores amigos e que mais acreditava em seu talento – e Curtis Rodgers a montar um grupo de rock/soul. Mesmo sabendo que seu pai desaprovaria tal atitude e, ainda mais, o retaliaria, Al aceitou o convite e, juntos, Albert Greene, Lee Virgins, Curtis Rodgers e Gene Mason formavam o “The Creations”. Depois do ensaio de música gospel com os irmãos, Al ensaiava rock’n’roll e soul com os amigos.

Depois de algumas apresentações e de até prêmios conquistados pelo The Creations, Robert já tinha captado os rumores que falavam por aí sobre as novas atividades musicais de Al. Robert estava certo de que seu filho estava cantando a música do diabo e, certa vez, surpreendeu o, ainda não tão pequeno e muito menos grande Al (o cantor tinha apenas dezesseis anos) enquanto o filho ouvia um disco de Jackie Wilson:

Intitulada de “Baby Work Out”, com lançamento em 1963, um mês antes de Al completar dezessete anos, a música dizia: “come out here on the floor, let’s rock some more”.

Foi o suficiente para que Al fosse expulso de casa pelo pai. Com apenas dezesseis anos, o cantor não tinha para onde ir. Al largou a escola para arrumar um emprego. Em 1966, conseguiu se formar na South High School, mas nenhum membro de sua família estava na sua formatura – com exceção de Lee Virgins que, para Al, era como um irmão.

Ainda assim, o cantor tinha um propósito para continuar: queria provar algo para o pai. Virgins, seu grande amigo, dizia “não deixe quem ninguém te pare, Al”.

E assim foi, entre o mel e o fel, Al Green não permitiu ser parado. O grupo com os irmãos acabou, mas o The Creations decolou. Mais à frente, Al se mudaria para Memphis, terra de Elvis Presley, Johnny Cash, Jerry Lee Lewis, BB King, Tina Turner, Otis Rredding e mais um nome importante para a carreira de Al Green: Willie Mitchel. Tudo mudaria para Al Green em Memphis e Mitchel trabalharia na produção musical da carreira solo de Al que, até os dias atuais, é a fase mais lembrada do cantor. Era apenas questão de tempo para Albert Greene se tornar Al Green, e trilhar a sua carreira rumo ao sucesso.

A FAMA E A REVIRAVOLTA

A partir de 1969, quando Green emplacou a sua carreira solo, não demorou muito tempo para que fizesse sucesso. Agora o seu nome artístico era Al Green e o cantor havia retirado a letra "e" do nome de família. Lançou em 1969, junto ao produtor Willie Mitchell, o álbum "Green is Blue" e, no ano seguinte, "Al Green Gets Next to You" cujo single "Tired of Being Alone" se tornaria o seu primeiro grande hit. Logo em 1972, Al Green lançaria o seu maior disco de sucesso, intitulado "Let's Stay Together", alcançando o primeiro lugar na parada black e nada menos que oitavo lugar na lista da Billboard; a música homônima ficou em primeiro lugar nas duas paradas. Foi no momento de fama que Green experimentou o que é não ser apenas um cantor, mas também uma empresa. Green estava em seu auge, e o ano de 1974 marcaria a vida do cantor para sempre.

18 de outubro de 1974, "você não sabe como é amar alguém": dizia a nota de suicídio deixada por Mary Woodson.

Mary e Green eram namorados, mas cabe ressaltar aqui uma relação muito específica que os dois tiveram. O namoro entre os dois não era, de fato, uma relação séria. Al Green era mulherengo e no auge de sua fama tinha namoradas, amigas próximas e amores em cada local que se apresentava.

Mas existia algo de especial em relação à Mary. Green conta em entrevistas que ela era, assim como ele, misteriosa. Al nunca sabia, de fato, o que Mary pensava. Ele desconfiava de que seu afeto tinha um marido, filhos, ou seja, uma família. Mary sempre negou. Mais tarde, foi descoberto que Mary era casada.

Mary Elizabeth Evans nasceu em 6 de agosto de 1945, na cidade de Oxford, Carolina do Norte e, no dia de sua morte, morava em Nova Jersey. Trabalhava como assistente em um consultório odontológico. A família de Mary, depois da tragédia do suicídio, afirmou que Mary, constantemente, falava sobre suicídio e de como o faria.

Mary e Green se conheceram em um show beneficente feito numa prisão em Nova Iorque. Green afirmou em entrevista que Mary estava sentada assistindo à apresentação com outros visitantes e, logo que o cantor bateu os olhos nela, Al Green só conseguiu pensar no quão bonita aquela mulher era. Foi após esse encontro que Mary e Green começaram a ter encontros românticos.

Certo dia, Mary fizera uma visita surpresa ao cantor. Green conta que, tão logo, Mary e ele sentaram para conversar. Mary, na ocasião, pedira para que Green se casasse com ela. Green, sem entender a situação, respondera que não, e Mary, prontamente, revidou. Mary disse a Al Green que se o cantor não aceitasse o pedido, ela tiraria a própria vida.

Green não acreditou no que Mary acabara de dizer. Depois da negação por parte de Green, Mary mudou de humor e apresentou um semblante obscuro. Al Green, em seus depoimentos e entrevistas sobre o ocorrido, sempre afirma que nunca entendera, de fato, o que se passava na cabeça de Mary.

Logo após esse estranho pedido, Mary, agarrou o pescoço de Green, afirmando que, mesmo com a negativa, nunca faria nada para machucá-lo. Green conta que Mary foi para a cozinha, e esquentava a água no fogão e o cantor, apesar de captar certa estranheza, decidiu subir para tomar banho.

Não se sabe exatamente se o cantor estava ainda na banheira ou escovando os dentes, apenas é certo que ele estava pouco vestido. Nesse momento, a vida de Al Green mudaria para sempre: Mary entrou no banheiro e jogou um caldeirão de água fervente no corpo do cantor, causando queimaduras graves de terceiro grau em seu corpo. Para causar ainda mais estragos, Mary havia misturado grãos de milho à água, criando uma pasta que grudou nas costas do cantor, que desesperado, tentava se livrar substância que colara em suas costas com a ajuda de uma amiga, Carlotta Williams, que estava hospedada no quarto ao lado.

De repente, ainda se sacodindo de agonia, Green escuta um barulho estrondoso de um tiro junto ao som de algo pesado caindo no chão. Era Mary. A namorada de Al Green havia se suicidado com a própria arma do cantor. Al Green entrou em colapso. Carlotta deu pílulas para o cantor se acalmar. A polícia foi chamada às 2h15 da manhã em uma sexta-feira do dia de 18 de outubro de 1974. Na bolsa de Mary foi encontrado um bilhete confessando o suicídio que dizia: “ou ele (Al Green) ou nada”.

Passados dias do ocorrido, Al Green foi investigado, entrevistado e a sua vida, que, apesar do sucesso, se encontrava estagnada em solidão, se tornou o caos. Green dizia “o que Mary fez foi um tormento para a minha vida”. Margaret Foxworth, que passou dias visitando Al, ainda relembrava o terror nos olhos do cantor e as dores que ele sentia. Al estava em sua fase mais vulnerável. Robert, na ocasião, também o visitara no hospital e indagava o filho: “tudo isso é verdade? Isso está mesmo acontecendo?”.

Al Green já havia restaurado a sua fé como cristão em 1973, enquanto ainda estava na estrada, mas foi com o acontecimento de Mary que o cantor mudou os rumos que tomava a sua carreira. Enquanto se recuperava das queimaduras e do trauma psicológico, Al se decicou a sua fé. Quando estava curado, comprou e se tornou líder de uma Igreja em Memphis, a The Full Gospel Tabernacle. Além de se tornar o Reverendo Green, Al se voltou para a música espiritual. Willie Mitchell, produtor de Al, não tinha pretensões em trabalhar em canções gospel e, assim, nasceu o "The Belle Album", em 1977, cantado e produzido por Al Green.

Depois do episódio com Mary, Al, apesar de abalado e aterrorizado, dizia: “Eu tenho que tentar seguir em frente. Não existe nada que possa te parar ou te fazer falhar, a não ser que você permita. Dizer que eu não consigo não é ser eu mesmo”. Green não estava apenas chateado com o que Mary fez a sua vida, mas, ainda mais, com o que ela fez a própria vida. O fato de Mary ter se suicidado acompanhou os pensamentos do cantor por muito tempo e o entristecia cada vez mais. Ele via apenas na palavra de Deus uma forma de seguir caminhando, mesmo em meio às feridas.

Em muitas de suas conversas com Mary, Al conta que a namorada o encorajava a pregar a palavra de Deus e, como ela mesma dizia, “a um dia ser pastor”. Al, que já estava imerso no mundo da fama e da música, apesar de já ter restaurado a sua fé como cristão antes mesmo da tragédia, não conseguia, de fato, visualizar a sua figura como reverendo. Depois do dia 18 de outubro de 1974, a vida e a obra de Al Green mudaram para sempre.

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