Do quintal ao templo (pt.03)
Sônia Maria Santos: Uma alma inaugurando uma forma
Do quintal ao templo (pt.03)
Sônia Maria Santos: Uma alma inaugurando uma forma
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Nessa série de artigos sobre mulheres poetas brasileiras, gostaria de republicar aqui um artigo sobre a poesia da goiana Sônia Maria Santos (1945-2020) pode-se repetir, sem correr muito risco de incorrer em erros, o que sobre a poesia de Dora Ferreira da Silva Gustavo Bernardo considerou relevante destacar, ao eleger uma citação a José Paulo Paes, na qual este “reconhece Dora na linhagem daqueles poetas cuja palavra ronda as fronteiras do sagrado, vendo na realidade o espaço aberto da hierofania” (BERNARDO, 2002, p. 245).
A linhagem de um poeta nos interessa na medida em que as filiações e as teias de invenção que estes tecem nos servem de guia para o horizonte da leitura. Sim, estará o leitor mais experiente a reconhecer um vínculo familiar entre as duas poetisas, separadas entre si por alguns anos – Dora viveu de 1918 a 2006; Sônia, de 1945 a 2020.
À poesia de Sônia Santos é aplicável a expressão de Gaston Bachelard[i] tomada de empréstimo a Pierre-Jean Jouve, aquela afirmação de que “a poesia é uma alma inaugurando uma forma”.
Da obra de Sônia destacarei neste artigo algumas amostras que intentam justificar a elaboração de uma poesia senão mística pelo menos metafísica da autora e seu itinerário poético rumo ao sagrado.
Meu foco aqui é o livro “Matéria da alma”, que desde a escolha do título nos remete a uma atitude metafísica. Apoiado nas teses de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) em suas “Questões disputadas sobre a alma[ii]”, procuramos entender a contradição de “matéria” e “alma” de que trata a poeta Sônia Maria dos Santos (SMS). Leiamos o poema-título:
Matéria da alma
Danço ainda com uma flor na boca
a esperança toda numa valsa.
Da alma, a matéria o tempo não gasta:
prossegue, amante, peregrina;
entre a alegria e o assombro
das horas repetidas;
entre a luz que chega e cega
e da que suavemente pousa na retina.
Ao analista restará provado que a poetisa não saca o “hilemorfismo” da polêmica que foi dirimida pelo Aquinate na Questão VI do livro citado. “O tempo não gasta a matéria da alma” – estaria o verso três (acima) se transcrito em forma prosaica. Ao que se segue: [a alma] da persona poética ali “prossegue, amante, peregrina;/entre a alegria e o assombro...” – tornando-se, pois, ato e potência, em total usufruto de sua liberdade (poética).
O que vemos em ação no poema é o “intelecto possível” da poetisa que se põe a serviço do fazer poético, “não porque sua alma [dela, poetisa] seja uma forma material, mas porque possui semelhança com a matéria, na medida em que está em potência para as formas inteligíveis, assim como a matéria o está para as formas sensíveis” (AQUINO, 2012, p. 139).
À maneira de São João da Cruz, Sônia sabe que as palavras são poucas para manifestar a revelação desta “luz que chega e cega” ou “da que suavemente pousa na retina” – a poesia e a revelação, donde poderia o leitor poderia fazer paralelismo neste texto transcrito por Dora Ferreira da Silva, em breves comentários à poesia de San Juan de la Cruz[i]:
“Porque, quem poderá escrever o que as almas amorosas, onde ele mora, experimentam? E quem poderá manifestar com palavras o que ele as faz sentir? E quem, finalmente, o que as faz desejar? Por certo ninguém, nem elas mesmas...”
Retomemos o fio, pois, e avancemos lendo outro poema do livro “Matéria da alma[ii]” (2011):
Só o verbo
Não mais
sobre a pedra
o cordeiro degolado,
no manto claro
azul do dia.
Só o verbo
com sua lâmina
desce à cabeça,
à linha estreita, à escrita;
gota a gota,
num cântico,
com a face erguida.
Nesse poema, dois fatos atraem minha atenção como leitor: (a) a referência à violência sacrificial do episódio bíblico de Abraão, quando Jeová pede a este que sacrifique o filho Isaac; e (b) o próprio título do poema, com seu conteúdo que se desdobra ao longo do poema, com seu tema joanino, é referência ao cordeiro de Deus, ao verbo divino e à negação da violência pela assunção do Sagrado – “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus” (Evangelho de João, 1:1).
Se em outro trecho deste mesmo livro, a poetisa se declara “de poesia ferida”, aqui ela quer fugir da violência sacrificial porque já entendeu que não há mais necessidade do sacrifício para a redenção; cabendo ao leitor armar o melhor de sua capacidade interpretativa para buscar bem entender e, assim, fruir a inspiração mística que permeia todo o livro.
Em estudo sobre a teoria mimética (criada há mais de sessenta anos pelo francês René Girard) e o apocalipse, o historiador brasileiro Maurício G. Righi, entre outras candentes questões antropológica, ressalta “a diferença entre o logos de Heráclito e o logos de João” (RIGHI, 2019, p. 168[iii]) e pode ajudar o leitor a entender como o verbo no poema de Sônia Maria poderia vir grafado com V maiúsculo. Transcrevo para melhor compreensão deste ponto:
O Logos joanino é estranho a qualquer tipo de violência; ele é, portanto, eternamente expulso, um Logos ausente que nunca teve nenhuma influência direta ou determinante sobre as culturas humanas. Essas culturas baseiam-se no Logos de Heráclito, o Logos da expulsão, o Logos da violência, o qual, se não for reconhecido, pode fornecer a fundação de uma cultura (GIRARD, apud RIGHI, 2019, p.169).
Alguns versos podem ser saboreados pelo leitor como provas, evidências objetivas deste ponto, sendo o mais forte desses momentos aquele mesmo em que “a lâmina” que desce à cabeça da poeta é pura iluminação, é água vivificante que desce “gota a gota”. Já o leitor sabia que
“o que brota
ascende
ilumina
e alguma coisa explica
não sei quando” (p. 23)
Eis, pois, a poetisa naquele estado de experiência da alma em sua vivência intensa do divino:
“o que sou:
louca e santa
e de poesia ferida”
(p.27)
E nesse “movimento de entrega ao cerne numinoso da interioridade” (SILVA, 1984, p. 26), Sônia como os poetas metafísicos (e os místicos) “não se vangloria de si mesma, porque seu centro é a própria impulsão do espírito” (da alma):
“Canta um deus
desce a luz
a manhã madura.”
(p.31)
Assim, nem mesmo a noção erótica de prazer e dor lhe é adversa:
Beija e gosta
O dia é cinza
a dor é nova:
rumores, sinas,
mil castanholas.
A dor não dorme:
tem pressa
aperta-me
beija e gosta
do corpo e da alma que tenho,
meio guitarra de Lorca.
(p.61)
Tampouco a morte assusta a persona poética que prevê o purgatório próximo, em “Levanto os pés”:
Levanto os pés e olho longe:
lápis de cores sobre tudo.
Só o sono das crianças
e dos cordeiros
em brancos lírios.
E quando os vivos, querendo Deus,
não mais voltarem para casa,
será ainda o mundo um horizonte
de espumas e luas e sol cravado.
(E quando ao Letes
eu chegar em segredo,
será como uma árvore no seu tempo).
(p.37)
Nota-se, portanto, como marcante na poesia de Sônia Maria Santos aquela característica destacada por Aíla de Oliveira Gomes sobre os poetas metafísicos ingleses, a saber que “a profundeza da concepção cristã da vida e o forte pendor espiritual entre os poetas metafísicos – [em que] o humano, para eles, esteja indissoluvelmente ligado ao divino”.
Olhando os lírios
Sobre o meu ombro
Deus põe sua mão sagrada,
o que mais quero;
quando na tarde
no campo
olhando lírios
soluço e grito
(de perfeição)
a pretexto de quem reza.
(p.105).
A essa característica marcante, sustento a hipótese de que à poesia de Sônia, como à de Dora se aplica a frase da própria Dora sobre San Juan de la Cruz, isto é, que “os poetas místicos vivificam a letra que palha seca seria se apenas o discurso teológico fosse seu veículo.”
Dá-se com a poesia de Sônia Maria Santos aquela característica destacada por Aíla de Oliveira Gomes sobre os poetas metafísicos ingleses, a saber que “a profundeza da concepção cristã da vida e o forte pendor espiritual entre os poetas metafísicos – o humano, para eles, estando indissoluvelmente ligado ao divino”.
E para encerrar, convido o leitor a revisitar este poema que prova como nenhum o que tentei demonstrar:
Frei Juan de la Cruz
Ao menor sinal de vento
de água corrente
de pedra e musgo,
seu pé no chão
e a bondade.
Na barra da tarde, Frei Juan
entende-se com seus irmãos de alma.
De dores, principalmente.
Faz poesia, derrama seu cálice.
(p.89).
[i] SAN JUAN DE LA CRUZ. “A poesia mística de San Juan de la Cruz”, tradução de Dora Ferreira da Silva. Prefácio de Hubert Lepargneur. Estudo “Mística e poesia” por Dora Ferreira da Silva. São Paulo, SP, Ed. Cultrix, 1984.
[ii] SANTOS, Sônia Maria. “Matéria da alma”. Goiânia: Kelps, 2011, p. 29.
[iii] RIGHI, Maurício G. “Sou o primeiro e o último: estudo em teoria mimética” / Maurício G. Righi. – São Paulo, SP: É Realizações Editora, 2019. 504 p.
[i] HIRSCH, Edward. “How to read a poem and fall in love with Poetry”, New York: Double Take Book/Harvest Book, 1999, p. 30.
[ii] TOMÁS DE AQUINO, Santo, (1225-1274). “Questões disputadas sobre a alma/de Aquino, Santo Tomás; tradução de Luiz Astorga. – São Paulo, É Realizações, 2012. - (Medievalia).


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