Entrevista com o demônio, de Colin e Cameron Cairnes
Com mais de 100 anos de história o gênero do horror ainda consegue explorar novas perspectivas.
Entrevista com o demônio, de Colin e Cameron Carines
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Na noite de 31 do outubro de 1992 o canal britânico BBC apresentava um episódio especial que pegaria o país inteiro de surpresa naquela ‘bogey night’. Ghostwatch, hoje conhecido por todos como um filme, chocou milhares de pessoas que estavam sintonizadas assistindo a uma reportagem sobre uma residência mal assombrada. A matéria que foi gravada (e em partes editada) previamente foi exibida por um dos canais de maior prestígio e ninguém esperava que o programa que até então fazia reportagens reais e ao vivo usaria de artifícios de ficção para um especial de halloween.
Algo semelhante aconteceu muitos anos antes, nesta ocasião ainda pela rádio. No domingo, 30 de outubro de 1938, o programa lider The Chase and Sanborn Hour que ia ao ar semanalmente às 20h00 pela NBC apresentava números de comédia – apesar da NBC ser líder do horário, a rede CBS apresentava ao mesmo tempo um programa que narrava ao vivo histórias de mistério e fantasia, neste dia especial na voz do ainda futuro cineasta, Orson Welles. O episódio da véspera do feriado de halloween foi uma narração adaptada do romance A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells – durante o programa Orson Welles se propôs a atuar para impactar a história e somou à sua narrativa intervalos com um repórter entrando e saindo do ar que relatava um acidente que estava acontecendo em uma cidade próxima a Nova York, esta estaria passando por uma invasão alienígena – as pessoas que estavam ouvindo o programa desde o começo conseguiram captar a intenção ficcional de Welles, mas outras milhares que entravam durante o programa realmente acreditaram que aquilo se tratava de um caso real e ao vivo, ainda mais no momento em que o ator que interpretava o repórter entrou com uma declaração de emergência se passando pelo então presidente Franklin D. Roosevelt - o pânico estava instaurado. Apesar de estar um pouco ciente do caos, Welles só revelou de fato novamente que aquilo se tratava de um programa fantástico ao final da narração – característica impetuosa que viria se tornar das mais conhecidas no estilo do diretor que seria em breve mundialmente consagrado.
Produção de 2023, mas lançada semana passada aqui em nosso país, Entrevista com o Demônio carrega muito destas anteriores inspirações sensacionalistas midiáticas. O filme se passa durante um especial televisivo de halloween. Jack Delroy, o protagonista líder de Night Owls, brilhantemente interpretado por David Dastmalchian, nos leva a um apresentador em crise dada a ameaça de perder seu programa por conta da baixa audiência, uma vez que concorria diretamente com o programa de Johnny Carson (personalidade do mundo real televisivo) - Jack Delroy está disposto a conseguir nesta noite medidora de audiência aquilo que precisa para não perder o tão sonhado lugar na mídia.
Assim como relatado nos primeiros instantes introdutórios do filme sabemos que nos anos 70 a questão da possessão demoníaca estava em alta, seja pelos crimes reais que chocaram o mundo, como os de Charles Manson que ganharam fama no período ou pelas produções cinematográficas como O Exorcista, a mídia soube muito bem aproveitar dessa corrente para elevar ao máximo sua audiência – e emEntrevista com o Demônio iremos conhecer com profundidade um caso particular de como esse meio não mede esforços para conseguir chegar ao topo.
Daqui em diante o texto pode conter alguns spoilers! (mas nada que irá tirar sua vontade de assistir).
O filme já no início faz referências diretas ao grupo Bohemian Grove, também considerado como seita. “Os Grove”, como retrata o narrador foi (ou ainda é) uma irmandade da qual eram membros pessoas influentes, tais como políticos e homens do show business, e aqui o personagem Jack Delroy irá fazer seu primeiro contato com esse favorecedor de sucesso que é o diabo – queira na forma cristã ou no devastador e ingrato formato mundo da fama. O Bohemian Grove é um grupo real e muitos famosos admitiram frequentar esse “clube” - Ronald Reagan, Henry Kissinger, George Bush, Richard Nixon são alguns dos figurões que dizem ter feito parte da irmandade, porém os mitos que cercam a “seita”, como os sacrifícios e rituais nunca foram de fato comprovados - muitos acreditam que Os Grove não passe apenas de um espaço onde os milionários/bilionários se encontram para tratar de negócios e celebrar – bom, nada que não seja um tanto pactual.
Mas voltemos a Jack Delroy, que assina o contrato com um desses magnatas, dono da rede UBC – assim que o contrato é assinado e registrado pelas câmeras um repórter grita ao fundo: “o que teve que sacrificar para chegar até aqui?” - dali em diante a vida de Jack passa por diversas reviravoltas - o filme nos leva então para o lado da crença de que a seita dos Grove era real e oferecia sim bens em sacrifício. Muitas são as referências ao longo da trama para deixar claro qual de fato foi o pacto feito por Jack, pessoalmente opino que de certa forma até um tanto demasiada – menos explicações com os bons diálogos que o filme contém já seriam o bastante, mas eis que peco por opinar, coisa tal que não concordo com muito do que li de ontem (que assisti) para hoje sobre o filme, um exemplo: há certo preciosismo de muitos que criticam o filme por ele, por exemplo mostrar cenas do back stage sem que se explique quem é aquele que está filmando sem ser visto, sem que se incomodem com ele – quem é esse câmera que grava conversas tão sigilosas sem ser repreendido? O começo do filme também conta que essas gravações foram encontradas, mas não explica quem as fez. Para mim isso pouco importa. Porém, dentre outras coisas que li devo concordar com a negativa, tal como com a própria confissão dos produtores terem assumido usufruir da tecnologia da inteligência artificial – quando o programa vai aos comerciais, no “voltamos já!” uma imagem estática com um personagem de terror fica em cena, estas imagens foram feitas por A.I. – o que é realmente lamentável, uma vez que percebemos a competência de toda produção artística durante o filme. Entretanto, que posso dizer é que ainda que por questões de gosto ou não, é sempre uma grata felicidade saber que o mundo cinematográfico do terror/horror está vivo e o como ele é capaz de se reinventar ao longo de mais de cem anos de trajetória - só neste ano pelo menos cinco grandes filmes estiveram ou estarão em cartaz.
Pelo mundo do “filme de terror” já passaram vampiros, aberrações, demônios, zumbis e tantos outros temas-gêneros, um deles bem aproveitado neste em questão inclusive, o Found Footage – as “filmagens encontradas” tem muito espaço e relevância em Entrevista com o Demônio e podemos dizer que uma das competências do filme é conseguir unir duas temáticas do horror, a possessão ao Found Footage – não que outros Found Footages não tenham por algum momento cenas de possessão e vice-versa, mas Entrevista com o Demônio consegue caminhar pelos dois mundos com profundidade – isso tudo somado a uma admirável fotografia.
Retirado o grande desastre que é estar numa sala de cinema (e para ver um filme de terror!) e constantemente pessoas entrarem com lanternas de celular ligadas para achar o assento depois mais de 15 minutos passados (a falta de respeito é imensa) – o longa prende a atenção de todos em suas cadeiras. As atuações de Ingrid Torelli como a garota possuída e de David Dastmalchian, declarado grande fã de filmes de terror são primorosas, David consegue nos fazer sentir aquele personagem como realmente alguém que transparece no olhar estar sob o fio da faca, num mix de carisma e desespero. De todo modo, as pessoas mantém o olhar fixo na tela, ele realmente nos capta como se assistíssemos mesmo a um programa sensacionalista do qual não queremos desviar o olhar até que o último suspiro seja entregue.
Assista.
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