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Fé, esperança e carnificina, de Nick Cave e Seán O'Hagan

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O êxodo até o coração

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Livraria [trabalhar cansa]
mar 20, 2024
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Fé, esperança e carnificina, de Nick Cave e Seán O'Hagan
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Fé, esperança e carnificina - o êxodo até o coração

Por

Dionisius Amendola

“Foi na cruz, foi na cruz, que um dia
Meus pecados castigados em Jesus
Foi na cruz, que um dia…”

Nick Cave

Dos discos mais impressionantes do último ano, Saved! (e seu duplo, Saved! The Index), foi concebido como uma experiência religiosa/estética/musical que registrava o “renascimento” de Kristin Hayter, agora sob a alcunha de Reverend Kristin Michael Hayter (ou pastor Kristin Michael Hayter). Parte do repertório dos discos é de canções tradicionais do universo religioso americano, universo de tendas repletas de fiéis e transe, de pastores em êxtase embriagados glossalalia religiosa, onde pecadores temem as chamas do inferno e sabem que o capiroto está sempre à espreita. É um disco imerso em uma religiosidade febril e carismática. Hayter não apenas interpreta as canções, ela evangeliza, ela quer nos converter através das cançãos. E para nos fazer “entrar em sua tenda” ela usa de artifícios estéticos que criam uma aura, um redemunho de fé a nos puxar para seu centro. Assim, lamentos, preces e hinos foram registrados em um gravador de quatro canais, e editados de forma a dar a impressão de estarmos a ouvir gravações de cem anos atrás - distorções, cortes bruscos, ruídos, criam uma atmosfera de disjunção temporal e assombrologiaestética - estética esta que muito lembra aquela que encontramos na sonoridade e nas obras do compositor William Baskinski (Disintegration Loops, Lamentations, The Clocktower at the beach) e no ideal filosófico/estético japonês wabi sabi.

Para aqueles que frequentam a igreja dylanesca dos apóstolos dos últimos dias o título do disco da pastora Kristin remete diretamente ao disco homônimo de Bob Dylan, Saved, zênite da fase born again do cantor americano - para os infiéis, um breve comentário sobre este momento da carreira e da vida do bardo americano.

A religiosidade e o imaginário cristão estão presentes no cancioneiro americano em todas as suas vertentes, não apenas no gospel, mas também blues, rock, jazz, country etc. Bob Dylan cresceu e se formou como artista imerso nessa cultura - e não é nenhuma aberração interpretar uma de suas primeiras canções de sucesso, Blowin’in the wind, como uma canção sobre o poder do Espírito Santo. Mas sempre esquivo e mercurial, suas letras eram mais ambíguas liricamente do que aquelas encontradas nos trabalhos de artistas como Johnny Cash ou Elvis Presley. Mas em 1979 Dylan encontrava-se perdido, e isso o levou aos braços da musicalidade e da religiosidade gospel. Diz a história que enquanto fazia um show em San Diego, uma pessoa que assistia Dylan jogou uma cruz de prata no palco, e o cantor pegou aquela cruz e colocou no bolso. No dia seguinte ele se sentia amargurado, ele então pegou a cruz e a colocou no pescoço, novamente diz a história, Dylan teria sentido a presença de Jesus Cristo. Dylan procurou conversar sobre essa experiência com a atriz (e affair) Mary Alice Artes, ela o levou para conhecer a Vineyard Christian Fellowship, fundada pelo pastor Ken Gulliksen nos anos 70.

É neste contexto que Dylan lança sua trilogia gospel: Slow Train Coming, Saved e Shot of Love - para a incredulidade dos fãs e engulho dos críticos. Discos onde Bob Dylan escreve letras que são praticamente sermões sobre tentações, pecados, culpas, sobre o julgamento final e o poder do sangue de Cristo, sobre Deus e o diabo.

Nick Cave sempre foi um homem religioso. Não no sentido rasteiro e comumente associado aos carolas que frequentam igrejas e doam o dízimo em nome de uma boa varanda no paraíso, mas no seu mais profundo significado, aquele do homem que vive a fé com todos os seus tormentos, angústias, comendo a poeira e coberto de cinzas, amargurado e assombrado pela visão do arbusto que arde eternamente em chamas no deserto.

Mas se no passado parte do interesse de Cave pelo imaginário cristão era filtrado por lentes esteticistas, mantendo certo distanciamento entre o artista e o homem, entre o compositor iconoclasta e o indivíduo privado, com a morte acidental de seu filho Arthur, em 2015, Nick Cave encontrou-se em um momento limite de sua vida, onde confrontar a perda, a dor, o sofrimento, a morte era não mais uma mera experiência estética inconsequente (ou irresponsável), mas algo que o levou aos extremos do sofrimento, ao marco zero de sua existência - um momento de arrependimento e...conversão.

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