Muitos membros, um só corpo - II. Pseudo-Dionísio Areopagita
por Alexandre Sartório
2. Pseudo-Dionísio Areopagita e a ‘mística intelectual
A estrutura dos três estágios na ascensão da alma a Deus, a utilização da vida de Moisés como símbolo desta ascensão e o conceito de epéktase influenciaram, por volta de 500 d.C., o pensador graças ao qual “o adjetivo ‘místico’ obteve validade geral irrestrita para a experiência com Deus nas realidades deste mundo e sobre elas” (Sudbrack, 2007, p. 21): Pseudo-Dionísio Areopagita. Da fonte grega, Dionísio não bebeu apenas por meio de Gregório de Nissa, mas também diretamente, do filósofo neoplatônico Proclo, que viveu no século V (Sudbrack, 2007, p. 49). O mistério envolve o fundador da mística ocidental até mesmo em sua identidade. Dele, que se identifica num de seus escritos como o Dionísio Areopagita convertido por São Paulo (Atos XVII, 16-34), só sabemos que foi provavelmente um monge sírio que viveu entre fins do século V e início do VI (Brandão, 2005, p. 90). E, nos seus escritos, o mistério impenetrável também envolve Deus, o centro que atrai as almas, ao qual, não por acaso, o teólogo se refere com hipérboles e paradoxos, pois Ele está além da lógica e do cognoscível: o “raio supra-essencial da treva divina” (Pseudo-Dionísio Areopagita, 2005, p. 149), a “bruma supraluminosa” (Pseudo-Dionísio Areopagita, 2005, p. 153).
Estas expressões são de Teologia Mística, um dos poucos escritos de Pseudo-Dionísio que chegaram a nós, e que não é propriamente um texto místico, no sentido de que expressa uma experiência de união com Deus, mas discorre sobre a natureza e os processo que envolvem a mística. Nela, ele trata do estágio místico como o degrau mais alto da ascensão da alma, no qual esta se une à treva divina, acima de todo entendimento, por meio da teologia negativa: a aproximação do cristão a Deus através da expressão daquilo que Ele não é. Mas a alma não pode chegar ao cume da ascensão diretamente, sendo-lhe imperativo partir do chão e subir progressivamente. Pseudo-Dionísio fala sobre os estágios do seu esquema anagógico em outros escritos: Hierarquia Eclesiástica, Sobre os Nomes Divinos e Hierarquia Celeste. Nesta obra, o pensador trata da necessidade que (a) a alma tem de partir dos mundos sensível e inteligível, que pode conhecer racionalmente, para se elevar ao transcendente, pois “nós, os homens, não poderíamos de modo algum elevar-nos por via puramente espiritual a imitar e contemplar as hierarquias celestes sem a ajuda de meios materiais que nos guiem conforme requer nossa natureza” (Pseudo-Dionísio Areopagita, 2019, p. 9). Não podemos nos aproximar intelectualmente, por exemplo, dos anjos, sem nos utilizarmos de realidades que nos são mais próximas, experimentadas na vida material; as realidades sensível e inteligível podem nos apresentar elementos mais elevados. O caminho ascensional através do mundo sensível faz-se possível porque (b) as coisas do mundo contêm algo do suprassensível, da luz divina: “em todas as coisas há algo de beleza, como diz corretamente a Escritura: Deus viu todas as coisas que tinha feito, e eram muito boas (Gn 1, 31)” (Pseudo-Dionísio Areopagita, 2019, p. 16). Ambas as ideias destacadas perpassam toda a tradição da mística cristã, e Pseudo-Dionísio afirma, em Teologia Mística, tê-las desenvolvido mais noutro tratado seu, Teologia Simbólica, que sequer sabemos se efetivamente existiu. Neste tratado, ele teria “celebrado”
quais as metonímias acerca do divino a partir das coisas sensíveis; quais as formas divinas, quais as figuras divinas, partes e órgãos, quais os lugares divinos e ornamentos, quais os furores, quais as tristezas e ressentimentos, quais as ebriedades e entorpecimentos, quais os juramentos e quais as imprecações, quais os sonos e quais as vigílias e quantas outras formas santamente modeladas existem das figuras simbólicas de Deus (Pseudo-Dionísio Areopagita, 2005, p. 155).
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