“A luz sobre São Petersburgo é como a luz sobre Amsterdã, um reflexo infinito na água. Com uma única diferença: quando cai a neve, desaparece a sujeira da cidade, some tudo que incomoda, tudo que é insípido; tudo adquire delicadeza de conto de fadas, como se um manto de arminho cobrisse toda a cidade” (p. 132).
Nonada – no clima gelado, úmido e inóspito da baía do rio Neva, o czar Pedro, o Grande, mandou erguer a cidade que seria, com breve interrupção, a capital do Império Russo até seu fim, com a revolução comunista: São Petersburgo. Foi em Petersburgo que Dostoiévski quase foi executado a mando do czar Nicolau I; e foi na mesma cidade que os comunistas (seja sob o comando de Lenin ou de Stálin) executaram o marido e amigos de Anna Akhmátova. E foi em Petersburgo que esses e outros grandes artistas repetiram, purificado pela gentileza da arte, o gesto de Pedro, o grande, erguendo desde uma terra hostil o esplendor.
A São Petersburgo do viajante-escritor holandês Jan Brokken é a cidade do duro jugo político; do silêncio imposto; do pântano, sobre o qual se construiu a cidade – uma cidade sempre na iminência de imergir, sempre na iminência de cair na ruína, seja nas mãos ansiosas pela última novidade, as toscas novidades do nosso mundo, ou nas mãos grosseiras de quem só sabe agir pela força: pela boçalidade capitalista ou pela brutalidade comunista. Em seu relato O esplendor de São Petersburgo (2016, trad. Flavio Quintale, Âyiné, 2022), Brokken faz várias comparações entre o estado da cidade em 1975, quando a visitou durante o período comunista, e na sua volta, em 2013. Sob a superfície em que se notam melhoras significativas e pioras constrangedoras, o escritor deixa evidente que duas coisas permanecem.
A lama. São Petersburgo é a cidade em que Anna Akhmátova passou dias incontáveis na frente de prisões, à espera da libertação do filho; em que Dostoiévski quase foi executado por um tiro e onde foi perseguido constantemente pelas dívidas e pela pobreza; em que se localizava o paraíso da infância de Nabokov e de Rachmaninoff, que, exilados, criaram outros reinos de beleza; em que Shostakovich esperou por anos, noite após noite, na porta de casa a chegada da polícia comunista. Brokken conta histórias, cobertas de sujeira, violência e sofrimento, dos grandes artistas e de grandes obras de Petersburgo. “Não, o direito à felicidade não existe. Os russos têm muito mais experiência com isso do que nós, a história ensina. Era a razão de Dostoiévski estimar mais os russos do que outros seres humanos: tinham maior capacidade de suportar o sofrimento. Por meio de todo aquele sofrimento chegavam mais frequente e rapidamente à essência das coisas do que alguém que jamais temera ter de fazer uma viagem apenas de ida à Sibéria” (139-140).
Mas, em meio à lama, ao sofrimento profundo, nesse enlace de noite, raiz e minério, uma orquídea forma-se. Sobre tudo isso, repousa o esplendor. Quando se deita o véu da neve da beleza sobre a cidade, brilha uma luz estranha, que não se sabe se vem do alto ou se brota da terra. Pois é difícil resistir à ideia de que saía dessa terra úmida e gelada a poesia que passava pelas mãos dos grandes artistas petersburguenses, que sabiam dever tudo a ela – e por isso uns não a abandonaram nunca, como Akhmátova e Shostakovich; outros só à força, como Dostoiévski; e outros ainda, o fizeram por medo e nunca esqueceram o jardim guardado por querubins que deixaram para trás, como Rachmaninoff e Nabokov. E é por isso que, depois de ouvir elogios à sua ópera A dama de espadas, por ser uma tentativa de restabelecer São Petersburgo como um centro dos ideais clássicos da cultura (ou seja, um esforço cosmopolita), Tchaikóvski voltou para casa “balançando a cabeça, incrédulo” (p.88): era do esplendor de Petersburgo que sua música falava. A luz de São Petersburgo se reflete na neve com uma potência infinita, tem sabor de angústia e de redenção: “às vezes tudo se conecta em uma explosão de beleza” (p. 211), diz Brokken: a neve esplendorosa é a prosa de Dostoiévski, com sua verdade flamejante; são os sentimentos humanos profundos, nossa ânsia irresistível pelo sagrado, encarnados nas formas geométricas de Malévitch; é o brilho aristocrático da poesia de Anna Akhmátova:
“Derreta do imóvel bronze do olhar
A neve, lágrimas, a despencar,
E voe a pomba da prisão distante
E o barco a cruzar o Neva constante.” (p. 15)
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