O pânico satânico e a morte do mito
Talvez nunca tenha sido tão confuso estar vivo, especialmente porque perdemos a ferramenta que poderia nos ajudar a dar sentido a tudo isto.
O pânico satânico e a morte do mito
Por Aisling McCrea
Tradução - Alexandre Sartório
Há um tempo, li um livro chamado Dangerous Games: What the Moral Panic Over Role-Playing Games Says About Play, Religion, and Imagined Worlds (Jogo Perigoso: o que o pânico moral a respeito do RPG diz sobre jogos, religião e mundos imaginários) de Joseph P. Laycock. O livro aborda, com grande detalhamento, a criação e a ascensão em popularidade de Dungeons & Dragons e outros RPG’s, nos anos 70 e 80, e a subsequente reação contra eles, conduzida pela direita religiosa americana, que via esses jogadores como praticantes de satanismo. Na verdade, não sou uma fã de jogos de tabuleiro – tenho a disposição dos nerds para isso, mas não a paciência – mas leio qualquer coisa sobre ‘pânico satânico’ que aparece na minha frente, e gostei muito do livro. Há sobretudo uma passagem dele que me marcou; sequer é uma passagem crucial, é mais um aparte que qualquer outra coisa, mas uma observação sobre a qual refleti inúmeras vezes desde então.
O livro cita Karen Armstrong, uma pensadora da área de Religiões Comparadas, a respeito da diferença entre o que os gregos chamavam de mythos e logos. Logos é, grosso modo, conhecimento adquirido por meio do universo da ciência, da razão e da observação, com o qual podemos entender o mundo material e o que ele contém, as leis de causa e efeito em nosso ambiente e como navegar pelos aspectos mais literais do nosso mundo. Por exemplo, sabemos que, se estamos com fome, é por causa de certos processos químicos em nosso cérebro e em nosso sistema digestivo, indicando que nossos corpos precisam de sustentação física, e que, se comermos, o processo químico vai parar e a fome irá embora. Nós sabemos que, se derrubarmos comida enquanto comemos, a gravidade vai levá-la a cair no nosso colo. Por outro lado, Armstrong descreveu mythos como algo que tem ligação com “aspectos mais fugidios da experiência humana”: tudo o que não pode ser explicado exatamente em termos mais literais, mundanos ou racionais. Ele abrange histórias de acontecimentos e experiências sobrenaturais – as ações de um deus ou deuses, se preferirem –, que não são literalmente verdadeiros segundo os padrões do logos, mas são verdadeiros sob outra perspectiva, no que se refere ao sentido: psicológico, emocional, espiritual.
Então, como mythos e logos explicam o ódio dos evangélicos a jogos de monstros horripilantes? De acordo com Armstrong, tipos fundamentalistas de religião – como as escolas cristãs que dominaram os anos da presidência Reagan – fazem esses dois mundos ruírem e tornarem-se um só. É de se imaginar que o reino preferido dos evangélicos seja o mythos, já que acreditam tão firmemente em Deus. Mas não – é o logos que amam, e o mythos é, para eles, inútil. Por exemplo, outras escolas cristãs interpretariam o Gênesis como verdadeiro sem ser literalmente verdadeiro; Deus teria entregado aos mortais uma história sobre a criação da Terra que transmite algum tipo de significado divino, sem negar tudo que o logos nos ensinou sobre evolução e cosmologia. Mas, para os fundamentalistas, “a Bíblia dizer a verdade” significava que a Terra devia ter sido feita em sete dias, porque a Bíblia é a Palavra de Deus e cada palavra que ela contém é a verdade, e verdade no sentido de material, lógica e cientificamente verdade. As leis do nosso mundo prosaico tinham que ser também as leis por meio das quais viam a Deus. Todas as provas que diziam que a Terra tinha mais do que seis mil anos, as quais tinham sido descobertas pelo logos, precisavam ser “desacreditadas” no universo do logos, ou ao menos uma imitação dele; daí a construção do Museu da Criação em Petersburg, Kentucky, as discussões sobre dinossauros terem ou não vivido no Jardim do Éden, as tentativas de determinar as dimensões da Arca de Noé e como exatamente um casal de cada animal da Terra coube nela. (Isso também ajuda a explicar em parte evangelho da prosperidade, a crença de que a riqueza material é uma prova da preferência de Deus pelos justos e Sua propensão para o lado deles – afinal, é com dinheiro que valorizamos as coisas no mundo material, então por que não no outro mundo também? Que outra medida de valor poderia existir?)
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