Os automóveis ardem em chamas, de Marcel Novaes
Conectar os fragmentos e uma realidade insana, destruída, na tentativa de se retorna à sanidade e normalidade é o grande mistério deste romance de estréia de Marcel Novaes.
Os automóveis ardem em chamas, de Marcel Novaes -
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Os automóveis ardem em chamas, romance de estréia (na ficção) de Marcel Novaes, foi uma das melhores surpresas literárias - quiçá culturais - que tive nesse ano 2022. Trata-se de um romance policial, mas se torna algo muito maior e mais complexo do que um mero exercício de gênero. Digo sem exageros que Os automóveis ardem em chamas é um livro fundamental para compreendermos as últimas décadas da história política, social e cultural do Brasil.
O romance conta duas tramas paralelas, que ocorrem em períodos distintos: o drama de um grupo de estudantes envolvidos na luta armada durante a ditadura militar, nos anos 70, e a história de um fotojornalista e um investigador, em 2019. E vou dizer somente isso, por que a história criada por Novaes possui inúmeras voltas e reviravoltas, muitas deles inusitadas, outras tocantes, que eu não desejo estragar para o leitor. Mas é na articulação dessas duas tramas que que o autor - que já publicou dois livros de divulgação histórica - faz uma análise sobre o que é o Brasil dos últimos quarenta, cinquenta anos.
Toda grande literatura policial se utiliza do artifício do crime para explorar mazelas sociais, culturais, políticas e mesmo espirituais que acometem toda uma sociedade. O investigador, seja ele um policial profissional, seja ele um civil amador, percorrem os múltiplos estratos sociais em busca da solução do caso, e nisso os diversos autores que contribuem para o gênero nos desvelam, também, a realidade social do seu país. O exemplo mais recente, e óbvio, desse tipo de movimento é o chamado “noir nórdico” ou “noir escandinavo”, de autores como Stieg Larsson, Lars Kepler, Jo Nesbø e outros, que se utilizam de assassinatos, roubos, e todo tipo de expediente criminoso para explorarem a corrupção e a perversidade que se ocultam nas sombras de países como Noruega, Dinamarca, Suécia e Islândia. Os professores Keith J. Hayward e Steve Hall argumentam que, nos recessos das páginas dos romances de noir nórdico, há uma sombra que se alastra: a sombra do fracasso do Estado de Bem-Estar Social, o arranjo político-social-econômico que organiza a vida nesses países. Por trás da fachada de perfeição social e política, altos índices educacionais e econômicos, há uma sensação de que as coisas, na verdade, não vão bem. Uma dessas tentativas de ocultar a verdade sombria que se alastra pelo subterrâneo desses países é justamente num falso e tacanho discurso político, dividido entre uma esquerda hiper-progressista e uma direita que por vezes flerta com o fascismo. Ambas estão carcomidas, incapazes de lidarem com a realidade. Marcel Novaes faz algo semelhante com o seu romance de estréia, mas a sociedade em questão é, claro, a brasileira. Para isso, a trama do romance passa necessariamente pela história recente do país, ao menos meio século de lutas políticas e sociais, além da passagem do período da ditadura para o da nova república. E, como em suas contra-partes nórdicas, Novaes também percebe que há uma sombra que se alastra por baixo da nossa realidade tropical.
Os automóveis ardem em chamas possui muitos personagens, mas é com poucas palavras que o escritor não só os apresenta, mas dá vida a eles também. Antes da metade do livro já nos sentimos íntimos deles, mesmo quando discordamos de suas ações e posturas. Todos eles parecem pessoas de carne e osso, e atuam de uma maneira que nunca parece forçada ou pré-determinada pela trama ou pelos desígnios do escritor. Tudo flui de forma tão natural que cheguei a pesquisar sobre os eventos para ver se a história em si não era real.
Novaes possui talento nato para descrever cenas de ação grandiosas e complexas - a batalha da Maria Antônia, por exemplo, ou um assalto a banco - com pequenas ações, gestos e palavras que brotam de maneira quase imperceptível mas que dão vida ao todo. E isso é o grande trunfo do livro: ele dá vida à história. Algo que só um romancista pode fazer. Há urgência em cada linha do romance.
Por fim, me surpreendi positivamente com o estilo de Marcel, ainda mais levando em conta que se trata de sua estréia na ficção. A leitura é fácil, sem grandes arroubos ou tentativas de se parecer excessivamente culto e sofisticado. Isso não significa, no entanto, que o texto de Marcel seja simples, básico. É comum vermos na literatura comercial, em especial nos livros policiais, um estilo que busca “acomodar” demais. O de Marcel é direto, rápido, invisível. Há um aspecto de crônica, aqui, e uma que visa mostrar a realidade brasileira - pelo ponto de vista de um grupo variado de personagens - que remonta a mestres do gênero, como Rubem Fonseca e Patrícia Melo. Marcel retrata o cotidiano - mesmo quando esse cotidiano envolve assaltos a bancos e sessões de tortura - mas sem nunca cair no banal. Banal, aqui, só a maldade e perversidade de alguns personagens.
E, por falar em banalidade, Marcel desvia de das arapucas políticas e ideológicas que acometem a cultural nacional. Em momento algum ele cai em discursos ideológicos ou deixa prevalecer as suas preferências políticas. Não sei quais são e, sinceramente, pouco importa. Como artista, Marcel faz aquilo que deveria ser o básico: ele dá um passo para trás e tenta enxergar o todo. Como um investigador, ele tenta conectar as pontas soltas da realidade do país para tentar fazer sentido da história. E esse é o ponto principal: Os automóveis ardem em chamas é um romance de mistério em primeiro lugar, onde o investigador - seja ele um policial, seja ele um civil - tentam juntar os fragmentos deixados pelo criminoso para reconstituir a verdade.
E todo romance policial é sobre o desvendamento da verdade. Uma verdade que pode ser desagradável, horrível. Uma verdade que se oculta em arquivos, memórias, fotografias e nos depoimentos contraditórias de diversos atores e testemunhas. A verdade é ambígua, multifacetada. Marcel Novaes é físico de formação. Sua área é a de Exatas. Os seus personagens, no entanto, são quase todos de Humanas (com exceção de Mauro, crucialmente), mas tomados pela certeza moral que suas diferentes ideologias fornecem. Ao final, vemos que a realidade - a verdade como ela é, e não como gostaríamos que fosse - aparece para mudar os rumos de nossas vidas. Há um trecho revelador:
“Por outro lado, era uma pena sufocar o sentimento de indignação, a vontade de participar que ela manifestava. A verdade é que não estava em posição de orientar ninguém. Se ao menos o mundo, começando pelo Brasil, deixasse de ser insano e passasse a fazer um pouco mais de sentido, ficaria mais fácil encontrar o rumo de sua própria vida (…)” (Pág. 148)
A realidade brasileira está insana, e Marcel nos mostra que isso não é um fenômeno recente. No máximo, essa insanidade ficou dormente, quieta, apenas aguardando o seu momento de re-aparecer. Conectar os fragmentos dessa realidade insana, destruída, na tentativa de se retorna à sanidade e normalidade é o grande mistério de Os automóveis ardem em chamas.
Não quero dar spoiler, mas o mistério de Os automóveis ardem em chamas, assim como o de toda grande literatura policial, é que ele não tem solução alguma.
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